Considerações
sobre a graça preveniente.
À Fabrício Zamboni, que me desafiou a refletir
sobre o tema.
O
conceito Graça, em sua maneira simples, é adotado por todas as teologias
consideradas cristãs, no sentido clássico do cristianismo. Grosso modo, graça,
é a ação benevolente de Deus, que permite ao homem se interessar, buscar e ter
acesso às realidades que estão acima de sua natureza caída. Esse ato benévolo é
o ato que o capacita a se movimentar em direção a Deus e a sua vontade; sem a
graça, jamais o homem conheceria a Deus, e por consequência, jamais se
interessaria em ser agradável a Ele.
Apesar da unidade entre as linhas teológicas em relação ao conceito geral da graça, algumas distinções, que buscaram ampliar o entendimento da graça, não alcançaram a mesma unidade que o conceito genérico alcançou. Se a ideia genérica da graça é uma ideia unânime entre as teologias cristãs, o conceito extensivo, graça preveniente, não goza a mesma concordância.
Admitida
desde Agostinho, citada explicitamente por Anselmo e Tomás de Aquino, e
abordada enfaticamente por Jacobus Arminius e John Wesley e harmonicamente, o
conceito graça preveniente não nutre
integralmente a mesma interpretação entre os calvinistas. Não adotado
explicitamente por essa vertente teológica, a chamada graça preveniente, entre
os calvinistas, é admitida apenas como ato benévolo de Deus direcionado em
favor dos eleitos. Pode ser considerada preveniente, como o próprio termo
indica, apenas, pelo fato de existir em favor do homem, antes de qualquer ação
deste, engendrando nele o desejo de praticar o bem, de romper com sua natureza
caída, enfim, de ser a agradável a Deus. Esse desejo elevado só é manifesto no
homem, pela vontade direta de Deus, infundindo nesse homem, seu eleito, um
desejo irresistível e eficaz. A graça de Deus, segundo o calvinismo é sempre diretamente
eficaz, ou seja, se Deus deseja que alguns homens cheguem ao conhecimento da
verdade, e através dela sejam salvos, por consequência, esses, de fato serão
salvos, pois serão alcançados por Deus, antes de qualquer particular ato ou
desejo humano, levando-os a crer e se arrependerem.
Entre
as teologias arminiana e wesleyana há maior harmonia interpretativa. Falando
sobre a graça, Jacobus Arminius se apropria do termo “prévio” já usado por
Anselmo e Tomás, indicando certa nuança da graça geral, ele afirma: “Essa graça precede, acompanha e segue; excita,
assiste, opera para que queiramos o bem, e colabora para que não queiramos em
vão. Depois continua: Essa graça dá início a salvação, é o que promove,
aperfeiçoa e consuma.[1] Em outro Momento, Arminius
afirma:
Mas,
que a especial concorrência ou assistência da graça, que é também chamado de
graça "cooperante e de acompanhante" não difere em espécie, nem em
eficácia dessa graça excitante, que é chamado de preveniente e operante, mas é
a continuação da mesma graça. É denominada "cooperante" ou
"concomitante", só por conta da concomitância da vontade humana, que
a graça operante e preveniente aliciou da vontade do homem. Esta concomitância
não é negada a quem a graça excitante é aplicada, a menos que o homem ofereça
resistência à graça excitante”.[2]
Diferentemente do ideário calvinista, segundo Arminius, a
graça de Deus é direcionada a humanidade, não se restringe ao seleto grupo dos
eleitos, como ensina o apóstolo João: “Ele é propiciação pelos nossos
pecados, e não somente pelos nossos, mas também, pelos de todo o mundo. (1 João
2:2)
Apesar de a graça ser
direcionada a todo o mundo, nem todos o homens se salvarão. Essa realidade evidencia,
segundo a teologia arminiana, que a graça pode ser resistida, ou seja, ela não
é irresistível como afirmam os calvinistas, e essa informação pode ser percebida
nas Escrituras, na carta aos Hebreus, na seguinte exortação: “Portanto,
convém-nos atentar com mais diligência para as coisas que já temos ouvido, para
que em tempo algum nos desviemos delas. (Hb
2.1), continuada indagativamente: Como escaparemos nós, se não
atentarmos para uma tão grande salvação ...? (Hb 2.3)
Tanto
no sistema arminiano, como no wesleyano, a graça apresenta-se como manifestação
benevolente de Deus, configurando-se como possibilidade de qualquer homem ser
salvo, bastando, acolhê-la. Em seu estágio inicial, apresenta-se como
preveniente, pois atua em favor a humanidade, antes de qualquer ação particular
de qualquer homem, por isso, ela é preveniente. O homem conhece noções de
moralidade, mesmo tentando silenciá-la, ele escuta o clamor da consciência, e
com isso pode refletir sobre seus atos; isso ocorre por influência da graça, e
esse resquício do bem que podemos perceber em qualquer criatura não envolvida integralmente
pela graça, já testemunha a sua ação preveniente. Sobre isso, afirma Wesley: “Nenhum
homem vivo está inteiramente destituído daquilo que é vulgarmente chamado
consciência natural, embora esta não seja natural, e sim mais propriamente
chamada graça salvadora”. [3] Portanto, a graça salvadora, ou prévia, demonstra
a ação de Deus em favor de todo o homem. Se “toda a boa dádiva e todo o
dom perfeito vem do alto, descendo do Pai das luzes” como afirma Tiago, em sua epístola,
não podemos negar que todo o homem, que, sabemos, alcança boas dádivas, inclusive
a verdade, pois toda verdade reside em Deus, é alcançado, por certa medida da
graça de Deus.
Defendendo assistência da graça em favor de todos os homens, continua Wesley:
Todos
têm, mais cedo ou mais tarde, bons desejos embora a maioria deles os afugente
antes que lancem raízes profundas ou produzam qualquer fruto considerável.
Todos os homens têm um certo grau da luz que mais cedo ou mais tarde, mais ou
menos, ilumina a todos que vêm ao mundo. E os homens, ao menos que pertençam ao
pequeno grupo de consciência endurecida, sentem-se mais ou menos mal quando
agem contra a luz da sua consciência. De maneira que nenhum homem peca porque
não possua a graça, mas porque não faz uso da graça que possui.[4]
Além de ser defendido pela tradição cristã, o conceito de
graça preveniente, pode ser percebido nas Escrituras. Entendendo com clareza a
ideia implícita no termo graça preveniente, pode-se encontrar sua evidência em
muitos textos bíblicos. Vamos a alguns exemplos:
“Mas,
pergunta agora às alimárias, e cada uma delas te ensinará; e às aves dos céus,
e elas te farão saber;
“E a luz resplandece nas trevas, e as trevas
não a compreenderam (...).
Ali estava a luz verdadeira, que ilumina a todo o homem que vem ao mundo.
Estava no mundo, e o mundo foi feito por ele, e o mundo não o conheceu.
Ou fala com a terra, e ela
te ensinará; até os peixes do mar te contarão.
Quem não entende, por todas
estas coisas, que a mão do SENHOR fez isto?” (Jó 12.7-9)
Ali estava a luz verdadeira, que ilumina a todo o homem que vem ao mundo.
Estava no mundo, e o mundo foi feito por ele, e o mundo não o conheceu.
Veio para o que era seu, e os seus não o
receberam.
Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o
poder de serem feitos filhos de Deus, aos que crêem no seu nome;
Os quais não nasceram do sangue, nem da vontade
da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus”. (João 1.5 -13)
“Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho
unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida
eterna”. (Jo. 3. 16)
“E
se alguém ouvir as minhas palavras, e não crer, eu não o julgo; porque eu vim,
não para julgar o mundo, mas para salvar o mundo”. (Jo 12. 47)
“Mas Deus, não tendo em conta os tempos da ignorância,
anuncia agora a todos os homens, e em todo o lugar, que se arrependam; (At 17:30)
“Pois do céu é revelada a
ira de Deus contra toda a impiedade e injustiça dos homens que detêm a verdade
em injustiça.
Porquanto, o que de Deus se
pode conhecer, neles se manifesta, porque Deus lho manifestou.
Pois os seus atributos
invisíveis, o seu eterno poder e divindade, são claramente vistos desde a
criação do mundo, sendo percebidos mediante as coisas criadas, de modo que eles
são inescusáveis(...)”.
(Rm 1.18
– 20)
“Porque
todos os que sem lei pecaram, sem lei também perecerão; e todos os que sob a
lei pecaram, pela lei serão julgados.
Porque os que ouvem a lei não são justos diante
de Deus, mas os que praticam a lei hão de ser justificados.
Porque, quando os gentios, que não têm lei,
fazem naturalmente as coisas que são da lei, não tendo eles lei, para si mesmos
são lei;
Os quais mostram a obra da lei escrita em seus
corações, testificando juntamente a sua consciência, e os seus pensamentos,
quer acusando-os, quer defendendo-os;
No dia em que Deus há de julgar os segredos dos
homens, por Jesus Cristo, segundo o meu evangelho”. (Rm 2.12-16)
“Esta é uma palavra fiel, e digna de toda a aceitação, que
Cristo Jesus veio ao mundo, para salvar os pecadores(...)”. (Tm 1.15)
“Porque a graça de Deus se há manifestado, trazendo salvação
a todos os homens(...),
Ensinando-nos que, renunciando à impiedade e às
concupiscências mundanas, vivamos neste presente século sóbria, e justa, e
piamente, ”. (Tt. 2. 11,
12)
“Toda a boa dádiva e todo o dom perfeito vem do alto,
descendo do Pai das luzes (...)”. (Tg 1. 7)
O qual, na verdade, em outro tempo foi
conhecido, ainda antes da fundação do mundo, mas manifestado nestes últimos
tempos por amor de vós;(1 Pe1.:20)
“Ele é propiciação pelos nossos pecados, e não somente
pelos nossos, mas também, pelos de todo o mundo. (1 João 2.2)
(o Cordeiro) que foi morto desde a fundação do
mundo. (Ap13.:8)
Os versículos citados retratam a
ação de Deus em direção a todos os homens, independentemente de sua prévia postura, ação ou futura resposta,
ou de estarem inseridos em um grupo de eleitos. Revelam que a graça é uma doação de Deus, vivenciada em Cristo, antes da
fundação do mundo. (Ap. 13. 8; 1Pe.1. 18-21). Refletindo sobre eles, podemos identificar, o que a teologia, com Anselmo de Cantuária,
Tomás de Aquino, Jacobus Arminus e John Wesley chama de graça preveniente -, uma manifestação
benevolente e universal de Deus em favor do ser humano, que nem sempre se
efetiva como salvação, porém, se apresenta como possibilidade de qualquer homem
ser salvo, pelo fato de Cristo se apresentar como “a luz verdadeira, que ilumina a todo o homem”; de Deus ter amado o mundo (Jo
3.16); de saber que Cristo veio, “não para julgar o mundo, mas para
salvar o mundo” (Jo 12. 47),
“que Cristo Jesus veio ao mundo, para salvar os
pecadores(...)”. (Tm 1.15); e que Cristo é a
propriciação, não somente pelo pecado dos eleitos, mas pelos pecados de todo
mundo (1 João 2.2)”.
Com essa realidade em mente,
podemos perceber, que o homem, mesmo preso no pecado pode se mover para o bem, porque
conta com a assistência da graça, oferecida para salvar os pecadores. Essa
percepção, corroborada pelas Escrituras, estabelece como legítimo, o conceito
graça preveniente defendido pela teologia arminiana e wesleyana, tradicionalmente
difundido pela teologia cristã.
______
Citações
[1] ARMINIUS,
Jacobus. WORKS OF ARMINIUS VL 2. An Open Letter to Hippolytus a Collibus - 4.
GRACE AND FREE WILL.
[2] Ibdem
[3] BURTNER, R.W. e CHILES, R.E., compiladores. Coletânea de Teologia de John Wesley. 2ed. Rio de Janeiro: Instituto Metodista Bennett, 1995. 2ed.
[4] Ibdem
Referências
ARMINIUS, Jacobus. WORKS OF ARMINIUS VL 2.
BURTNER, R.W. e CHILES, R.E., compiladores. Coletânea de Teologia de John Wesley. 2ed .Rio de Janeiro: Instituto Metodista Bennett, 1995.
L. GONZÁLEZ, Justo. Breve dicionário de teologia / Justo Gonzalez; tradução Silvana Perrella Brito. São Paulo: Hagnos, 2005
J. GRENZ, Stanley. Dicionário de Teologia. Stanley Grenz, David Guretzki e Cherit Fee Nordling; traduzido por Josué Ribeiro. 5 ed. São Paulo: Vida, 2005.
ANSELMO, da Cantuária. Livre-arbítrio e predestinação. Uma concordância entre presciência e graça divina. Sobre a concordância da presciência, da predestinação e da graça divina com o livre-arbítrio. Tradução de Daniel da Costa. São Paulo: Fonte editorial, 2006.
ANSELMO, da Cantuária. Livre-arbítrio e predestinação. Uma concordância entre presciência e graça divina. Sobre a concordância da presciência, da predestinação e da graça divina com o livre-arbítrio. Tradução de Daniel da Costa. São Paulo: Fonte editorial, 2006.