Introdução
No extenso percurso histórico, desde o início dos registros das manifestações humanas, vários movimentos culturais e intelectuais foram se transformando. Como havia ditado o grande filosofo sistemático Hegel, dialeticamente os movimentos foram se transformando como síntese do choque entre velhas e novas ideias. Ao longo da história puderam-se testemunhar mudanças no modo de vida social. Fazendo uma comparação investigativa, facilmente se observará que os contornos culturais de hoje são diversos, e na maioria dos casos, muito diferente do que os de outrora. Se a dialética traça os rumos arquitetados por Hegel, nem sempre a nova arquitetura é feita de novos elementos, pois no choque entre o velho e o novo, muita coisa dantes usadas, ou, muitos elementos e ideias até então dispensados podem novamente vir a tona. Portanto, a síntese entre tese e antítese, entre o velho e o novo, poderá, com novas formas e variações, reaproveitar muita coisa ou ideia, tida como antiquada.
A filosofia e a teologia não fogem desse movimento que observamos. Em muitas obras que versam sobre essas manifestações intelectuais leem-se registros das mudanças na ordem das ideias – mudanças essas, que vez por outra, reafirmam o que remotamente fora rejeitado. Detendo-se na Teologia, pode-se perceber sem muito esforço essa realidade dialética, e é sobre aspectos dessa realidade dialética na teologia que timidamente passaremos a abordar.
1. Aspectos de uma dialética teológica.
Comentar sobre aspectos de uma dialética teologia é ter a princípio um leque de possibilidades, coisa que por sua extensão, impossibilitaria nossa pretensão de desenvolver um simples e específico comentário. Por isso, para realizar nossa pretensão, a saber, de construir, não um exaustivo comentário, mas uma abordagem parcial e simples - buscamos desenvolver um comentário que, mesmo beirando o superficial, não se configure como supérfluo.
Tendo assumida a hipótese da dialética teológica, podemos apresentar superficialmente algumas manifestações que entendemos se configurar como matéria prima da perpetuação dessa dialética.
A Teologia Cristã tem nos Escritos Bíblicos a fonte de sua movimentação dialética, porém, apesar da fonte comum, os movimentos teológicos cristão são destoantes. Por exemplo, os evangelhos e os escritos do apóstolo Paulo que tem servido como inspiração para uma série de sistemas, direcionam os aderentes de cada sistema a conclusões opostas. Se voltarmos nossa atenção apenas para os sistemas soteriológicos perceberemos que essa hipótese ganha ainda mais força. Nessa investigação, apontamos para o fato de que as mesmas fontes e ideias usadas para legitimar um sistema, são usadas para legitimar outro destoante.
Na Soteriologia Católica, temos como fundamento os Pais da Igreja, principalmente a fonte agostiniana, que avançando, gera a vertente tomista – apresentando-se em outra forma, que por sua vez ganha outra curso no afluente molinista, continuando nos contemporâneos, em vários modos, a movimentar o curso dialético das ideias. Já a Soteriologia Protestante tem como fonte os já citados católicos, canalizados em Lutero e Calvino, que engendra o afluente Arminius que, por sua vez, gera o afluente Wesley e demais, em diversidade de conteúdos, interpretações e ênfases. Porém tanto na primeira como na segunda, o lençol de água é as Escrituras. É importante ressaltarmos que os sistemas que citamos não seguem uma ordem estrita, tal como apresentamos, ademais, a grande maioria de nomes ou sistemas foram omitidos, o que pretendemos em nossa apresentação, é apenas mostrar que existe uma dialética teológica.
Através de um grande número de sistemas várias ideias foram discutidas. Temas como: soberania de Deus, eleição e predestinação (absoluta e inflexível ou, restrita e flexível); conhecimento de Deus (positivo, sempre diretamente atuante, passivo ou impassivo; ou circunstancialmente atuante etc.); livre-arbítrio humano (como coisa irreal, ou, existente apenas antes da queda; enfraquecido depois da queda – mais, ainda existente; só possível com a intervenção da graça preveniente; etc.) foram dialeticamente ganhando novos contornos, passando de uma rigidez ideologia à flexibilidade, ou inversamente.
Como prevíamos nossa intenção nesse simples comentário não é tratar com profundidade os principais aspectos da dialética teológica, o que demandaria maior trabalho, e, por consequência, exigir-nos-ia mais tempo de dedicação, coisa que atualmente indispomos, além de fugir de nosso campo de intenções. Pretendemos abordar apenas um aspecto marginal dessa dialética.
Apesar de entender que quando se fala em dialética teológica o assunto predominante deva ser as construções e reformas propriamente teológicas, agarrar-nos-emos a outra questão, a saber, a inversão de valores - realizada com o intuito de manter firme algumas construções teológicas.
2. A teologia da inversão de valores e as mudanças de ênfases.
Se até agora nossa tarefa foi a de destacar que de tempos em tempos ocorreram várias transformações nas teorias teológicas, doravante, passaremos a destacar uma questão específica, ou seja, a inversão de valores, principalmente em relação aos valores morais e potenciais atribuídos a Deus, assumida por algumas vertentes teológicas – e em seus defensores, tendo como fim, como já apontamos, manter intacta a consistência e coerência teórica da vertente teológica que defendem.
2.1 O enfraquecimento de valores morais em prol da perpetuação de alguns sistemas teológicos.
Para se configurar como uma genuína Teologia Cristã, independentemente do caminhar dialético, algumas ideias devem ser assumidas como inamovíveis. Umas dessas ideias basilares se referem ao caráter reto, santo, justo e amoroso de Deus, fonte de todos os bons valores, de toda boa dádiva e de todo o dom perfeito
(Tg 1.17). Portando, cristãmente crer em Deus, entre outras coisas, é crer que nEle residem, sem sombra nem variação, esses valores ideais. Apesar de verbalizada e confessada por todas as teologias cristãs, na engenhosidade de suas teorias, a palavra verbalizada e assumida sobre os valores que nos referimos não encontra assentamento em alguns sistemas teológicos.
Percebe-se o afloramento do calvinismo no Brasil. O que dantes era uma teologia quase que confinada a redutos específicos, hoje, sua influência se estende até mesmo em ambientes que tinha no arminianismo o seu principal afluente teológico. Na Internet, além da divulgação produzida por já tradicionais figuras e veículos calvinistas, essa nova camada também ostenta ferozmente sua teologia recém-absorvida através de sites, blogs pessoais ou institucionais, como também, atacando páginas que divulgam outras teologias, principalmente a Teologia Arminiana.
Independentemente do grau de profundidade que esses seminovatos calvinistas têm em relação à teologia que abraçaram, ou de outra teologia contrária que ferozmente atacam, percebe-se em suas posturas uma ousadia que por pouco alcança as raias do delírio, reforçando práticas de figuras já institucionalmente situadas e estabelecidas. Na ânsia de proteger a pseudológica de seu sistema teológico, não se constrangem a diminuir o que é de mais valorado nas Escrituras, a saber, o caráter reto, santo e justo de Deus, passando a construir, ou mesmo, perpetuar com mais explicitude, a teologia de inversão de valores.
O que vem a ser a teologia da inversão de valores? - Não é outra coisa, que uma teologia que diminui a importância dos valores morais, com o fim de supervalorizar o poder, por eles titulado como, soberania. É uma teologia que muda a ênfase das Escrituras, do amor, caráter, santidade, e justiça para o poder ou soberania. Na tentativa de garantir uma sobriedade teológica - até mesmo à ênfase evangélica do Novo tentamento é manipulada. Enquanto que a Bíblia registra a preocupação de Cristo em favorecer a humanidade, através de um tão grande amor por todos, que o levou a uma morte vil, os inversores, procuram direcionar esse favor gracioso Deus em prol da humanidade, diminuindo a extensão de sua doação benévola - apenas a um grupo ao qual chamam de eleitos. Se, se afirmava que o preço que pagou Cristo foi o caríssimo preço do pecado do mundo inteiro, a teologia da inversão de valores, apresentando a expiação de Cristo como preparada só para o grupo dos eleitos, com isso torna menor a extensão do sacrifício de Cristo do que é apresentado pelas Escrituras. Vejamos como as Escrituras nos apresenta a extensão do sacrifício e favor de Cristo:
“Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.
Porque Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que condenasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele.” (João 3. 16, 17)
“Pois assim como, por uma só ofensa, veio o juízo sobre todos os homens para condenação, assim também, por um só ato de justiça, veio a graça sobre todos os homens para a justificação que dá a vida” (Rm 5.18.)
“Porque Deus encerrou a todos debaixo da desobediência, para com todos usar de misericórdia.” (Rm 1.32)
“Pois o amor de Cristo nos constrange, julgando nós isto: um morreu por todos; logo todos morreram.” (2Co 5.14) .
Porque a graça de Deus se há manifestado, trazendo salvação a todos os homens... (Tt 2.11)
E ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo. (1 João 2. 2).
É muito claro nas Escrituras que o sacrifício e favor de Cristo e de extensão Universal, porém, os inversores diminuem consideravelmente essa dimensão.
Se a ênfase evangélica através da teologia de inversão de valores ganha novos realces, a moralidade também. Nesses contornos teológicos algumas expressões axiológicas passam a ser tratadas como quimeras.
Quando falamos na integridade de Deus, apontando que o homem, com o seu livre-arbítrio é realmente culpado por seu pecado -, assumindo o ousado sistema teológico inversivo, toda a retidão de Deus, apresentado nas escrituras como julgador de cada um segundo as suas obras, é desprezada, pois implicitamente ou em casos até explicitamente, afirmam que próprio Deus impediu que esses homens fizessem o bem. Deus já havia, indicam, escolhido positivamente os que seriam salvos e os que seriam condenados. Sobre esse pressuposto, Jacobus Arminius já advertia que afirmar que Deus estabeleceu positivamente os atos dos réprobos, é torná-lo autor do pecado:
“Embora o pecado não possa ser cometido por ninguém exceto por uma criação racional, e, por isso, deixa de ser um pecado, por esta mesma circunstância, se sua causa for atribuída a Deus; no entanto, parece possível, por quatro argumentos, fixar essa acusação sobre o nossos teólogos. ’Segue-se de sua doutrina de que Deus é o autor do pecado’". (Jacobus Arminius. Works of Arminius VlI).
John Wesley problematiza a questão da incoerência em julgar alguém incapaz de fazer o que fez.
“Se o homem é capaz de escolher entre o bem e o mal, ele se torna um objeto próprio da justiça de Deus que o absolve ou o condena, que o recompensa ou pune. Mas se ele não é, não se torna objeto daquela. Uma simples máquina não capaz de ser absolvida nem condenada.” E continua, “(...)A justiça não pode punir uma pedra por cair ao chão, nem, no nosso plano, um homem por cair no pecado, ele não pode senti-la mais do que a pedra, se ele está, de antemão, condenado... Será este homem sentenciado a ir para o fogo eterno preparado para o diabo e os seus anjos por não fazer o que ele nunca foi capaz de evitar?”
Defender que positivamente Deus estabeleceu os réprobos, é de alguma forma, além de torná-lo autor do pecado, apontar um traço de injustiça e de não retidão no caráter de Deus. Com muita propriedade o Rev. Amos Binney afirma: “Se o castigo é justo, é porque o castigado podia ter obrado de outro modo.” Portanto, segue-se que se o castigado não poderia ter obrado de outro modo, o castigo é injusto e injusto é o castigador.
Invertendo os valores tão zelosamente defendidos nas Escrituras, a teologia da inversão de valores, abandona a defesa do caráter reto de Deus, colocando nele um caráter obscuro – que faz dele, um julgador que não leva em consideração nenhuma ação humana, e pior ainda, que faz com que a maioria dos homens seja intrinsecamente impedida de desejar qualquer bem, qualquer salvação, oferecendo caprichosamente seu favor apenas a um grupo, tão pecador quanto o reprovado, independentemente de qualquer resposta humana. Ou seja, prática da acepção de pessoas que as Escrituras afirmam não existir em Deus, a teologia da inversão de valores assume como natural ação de um Deus soberano.
Defendendo, também, que algumas práticas pecaminosas foram incitadas por Deus independentemente do caráter já corrupto de alguns homens, a teologia da inversão de valores faz de Deus um corruptor de homens, coisa explicitamente rejeitada nas Escrituras, principalmente como lemos na clara assertiva de Tiago: Ninguém, sendo tentado, diga: De Deus sou tentado; porque Deus não pode ser tentado pelo mal, e a ninguém tenta. (Tg 1.13).
Se apropriando de textos de linguagem antropomórficas, os famigerados reversores teológicos fazem de Deus um ser imoral, que além de tentar alguém a práticas pecaminosas, o pune. É muito clara à percepção de quem se envolve em controvérsias soteriológias com defensores da teologia da inversão de valores o desprezo pelos conceitos morais que a Bíblia ciosa da reputação divina apresenta como traços do caráter divino. Diante dessa questão, a resposta a algumas indagações se fazem pertinentes, a saber:
Qual é a grande ênfase das Escrituras, o amor e a justiça de Deus, associada ao seu reto caráter -, ou uma soberania que julga a cada um de acordo com obras estabelecidas pelo próprio soberano?
O que as Escrituras mais explicitamente falam sobre Deus, sobre o seu amor pelo mundo, sua santidade, sua retidão e integridade, sua JUSTIÇA, - ou sobre sua soberania absoluta que impede intrinsecamente a possibilidade de salvação a muitos, ao passo, que intrinsecamente tem garantida a salvação a alguns, independente de suas ações?
O que mais as Escrituras exortam, a prática do autoexame, a necessidade de vigilância por conta da possibilidade do naufrágio da fé e para não receber em vão a graça de Deus, a necessidade do arrependimento -, ou o conforto de um grupo estabelecido de eleitos por conta da impossibilidade de que caiam da fé?
Conclusão.
Nessas poucas linhas, fizemos alguns apontamentos direcionados a praticas de defensores de uma vertente, que na ânsia de garantir seu principal pressuposto teológico, a saber, a soberania absoluta de Deus, cometem excessos que terminam por descaracterizar o Ente que visa defender. Apontamos para o problema vivenciado pelos defensores, por nós chamados, da teologia da inversão de valores, destacando que alguns valores que são colocados em alta estima nas Escrituras, por destacar a santidade de Deus -, na vertente teológica inversora, e nas mentes que assumem essa inversão, são relegados, na ânsia de valorizarem uma pretensa soberania absoluta, em detrimento a ética bíblica que direciona a Deus valores morais que não se harmonizam com o modelo de soberania absoluta que defendem.
É certo que a soberania divina é um fato bíblico. É certo também, em acordo com essa soberania, que nada ocorre sem a Divina Providência, até mesmo o livre-arbítrio do homem é manifestação da providência de Deus. Como também, é certo que não podemos omitir em qualquer manifestação intelectual essa realidade, e isso, implicitamente nos faz defender que a ocorrência de tudo está ligada a essa soberania e providência de Deus. Porém, o que não pode ser defendido, sob pena de apresentar Deus como um ser imoral, injusto e odioso, é inferir que essa soberania e providência de Deus que possibilita a ocorrência de todas as coisas, é a feitora positiva, intencional de todos os males do mundo, incluindo o pecado particular de cada ser, como inferem muitos calvinistas aqui tratados como inversores.
Teologizar sem reparar os caminhos que nossas inferências estão a nos levar é correr o risco de fazer teologia irresponsável e agressiva e de defender ideias e práticas contrárias aos atributos e valores que a Bíblica direciona para Deus.
Lailson Castanha
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Referências bibliográficas.
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ARMINIUS, Jacobus. Works of Arminius VlI.PDF
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LANE, Tony. Pensamento Cristão (Volume I); traduzido por Elizeu Pereira. 4ed. São Paulo: Abba Press, 2007.
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OLSON, Roger. A história da Teologia Cristã – 2000 anos de tradição e reformas; tradução Gordon Chown. São Paulo: Vida Nova, 2001.
BURTNER, R.W. e CHILES, R.E., compiladores. Coletânea de Teologia de John Wesley; 2ed. Rio de Janeiro: Instituto Metodista Bennett, 1995.