quinta-feira, 24 de novembro de 2011

O livre-arbítrio em São Bernardo

O livre-arbítrio em São Bernardo (Bernardo de Claraval)

por Luis de Molina

33. São Bernardo define esta mesma liberdade do arbítrio em seu Tractatus degratia et libero arbitrio (Tratado da Graça e do Livre-Arbítrio). Aqui, entre outras coisas, disse: “O criador singularizou a criatura com esta prerrogativa de dignidade, para que do mesmo modo que Ele age com pleno direito, assim também, em certa maneira, a criatura racional pode agir com pleno direito, na medida em que, somente por própria vontade se torne mal e receba castigo com justiça, ou permaneça bondosa e com justiça alcance salvação, porém, não porque sua própria vontade lhe basta para alcançá-la, senão porque, sem sua vontade, não poderia alcançá-la de nenhuma maneira. Certamente, ninguém alcança a salvação sem desejá-la. Pois o que lemos no Evangelho: ninguém vem a mim, salvo que meu pai me o traga (Jo 6.44); é o mesmo que lemos em outra passagem: obriga a entrar; e nada o impede. Com efeito, sejam quantos sejam todos aqueles ao que o benigno Pai – que quer todos os homens se salvem (1TM 2.4) – parece obrigar ou trazer a salvação, porém, só considera digno de salvação aqueles dos que sabe que a desejam por sua própria vontade. Sem dúvida, quando atemoriza e golpeia, o que pretende é que desejem salvar-se por sua própria vontade e não salvá-los de maneira obrigatória; assim pois, quando muda a vontade do malvado para que faça o bem, modifica sua liberdade, porém não a suprime. Um pouco depois demonstra que nem sempre se traz alguém obrigado, pois o cego se traz, porém ele também o quer; assim foi como São Paulo chegou de mão em Damasco (At 9.8); e a esposa pede leva-me após ti (Ct1.4). E em seu Sermão 81 in Cantica, disse: “o livre arbítrio é algo divino que refulge na alma como a pedra preciosa no ouro. Graças a essa liberdade a alma tem conhecimento do juízo e a opção de escolher entre o bem e o mal, assim como entre a vida e a morte, também entre a luz e as trevas; e em caso de que haja mais coisas que apelar confrontadamente entre si e os hábitos da alma, ela sempre será, como um olho, como um censor e árbitro que discerne e julga entre elas; e do mesmo modo que é arbitro para discernir, também será livre para escolher entre elas. Por isso chamamos de livre arbítrio, porque pode escolher entre elas segundo o arbítrio da vontade. Por essa razão, o homem pode agir meritoriamente*. Pois com razão elogiamos e censuramos todo bem ou mal que alguém faz, quando é livre para não fazê-lo; do mesmo modo que com justiça elogiamos, não tanto alguém que pode fazer o mal e não faz, senão alguém que pode não fazer o bem e o faz, assim também, faz mal tanto aquele que, podendo não fazer o mal, o faz. Com efeito, se não há liberdade, não há mérito.

Tradução: Lailson Castanha
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Fonte:

Concordia del libre arbitriocon los dones de la gracia y con lapresciencia, providencia, predestinación y reprobación divinas. Comentarios al artículo 8 de la cuestión 14 ¿Es la ciencia de Dios causa de las cosas?
Traducción de Juan Antonio Hevia Echevarría de Luis de Molina, Concordia del libre arbítrio.


Obs: *Não devemos interpretar os termos ação meritória, mérito (merecimento) apenas no aspecto positivo. Quando São Bernardo afirma: “Com efeito, se não há liberdade, não há mérito.”; ele não só enfoca que na ausência da liberdade qualquer galardão, elogio ou louvor seriam termos vazios, sem sentido. Implicitamente, faz-nos perceber também, que, na aceitação de um possível esvaziamento de qualquer merecimento, por conseguinte, deve-se aceitar que sem a liberdade, a reprovação também não faz sentido, pois, a ideia de reprovação desassociada da ideia de liberdade, também, torna-se um termo esvaziado de sentido.

Gravura: Bernardo de Claraval (São Bernardo)


segunda-feira, 21 de novembro de 2011

O que Deus fez por nós e o que Ele espera que façamos.

O que Deus fez por nós e o que Ele espera que façamos.Baseado na Segunda Epístola de Pedro

Bispo José Ildo Swartele de Mello*

Introdução:

a) Apresentação de Pedro:

Pedro introduz a si mesmo, primeiro, como um convertido: “Simão Pedro”, ele usa o nome composto daquele que era seu nome original, como era chamado antes de seu encontro com Cristo juntamente com o seu novo nome que lhe foi dado por Jesus, apresentando-se como um testemunho vivo do Poder Transformador de Deus. Simão tornou-se Pedro!

Depois, introduz a si mesmo como “Servo”. Sinal de que nunca perdeu a humildade e a consciência de sua condição primária de servo de Cristo, que é Rei e Senhor.

Por fim, apresenta-se também como “Apóstolo”, reivindicando a autoridade proveniente do fato de ter sido testemunha ocular e discípulo direto de Cristo para combater os hereges que estão deturpando a Verdade e desviando os crentes do reto caminho.

b) A importância da Verdade (o conteúdo e objeto da fé).

Pedro afirma que boa parte de seu ministério consiste em relembrar os cristãos daquilo que eles já sabem (1.12). Ele sente a urgência em repetir continuamente as mesmas verdades (2.13 e 15; 3.1,2 e 8). Às vezes, não nos sentimos inspirados a falar sobre temas que consideramos batidos, muitos chegam a sentir a tentação em sair a caça por novidades místicas e esotéricas que possam atrair multidões. Mas não devemos nos desviar da verdade. Os ensinos cristãos merecem e precisam ser repetidos. Pregadores fiéis e competentes aprendem a ensinar coisas antigas de modo novo e interessante.

Verdade baseada em fatos históricos e testemunhas oculares e não em lendas ou especulação filosófica (1.16).

Pedro quer que as pessoas creiam e ajam não simplesmente porque tais ensinos fazem parte de nossa confissão e herança religiosa, ou porque contém coisas boas e sábias, mas, sim, porque são verdadeiros!

Verdade baseada em revelação bíblica: “Porque nunca jamais qualquer profecia bíblica foi dada por vontade humana, entretanto, homens santos falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo.”

Precisamos nos dedicar ao estudo da Bíblia e da teologia para melhor poder ensinar. Toda prática, experiência e ensino devem estar firmemente calcados na Palavra da Verdade! Para nós, como cristãos, não importa se funciona, se dá resultado, se promove o crescimento da igreja, pois, o que importa mesmo é se está de acordo com a Verdade revelada nas Sagradas Escrituras.

Pedro está preocupado com as heresias destruidoras daqueles falsos profetas e mestres que deturpam os ensinos de Paulo e as demais Escrituras(2 Pe 3.15-16), transformando a graça de Deus e a liberdade cristã em libertinagem (2 Pe 2.2, 10, 13-19).

1) O que Deus fez por nós?

Carta endereçada àqueles que “receberam a fé”.

“Fé” que significa:

o ato de crer propriamente dito
e a substância e conteúdo do que é crido.


“Pela Justiça de Nosso Deus e Salvador” (1.1).

Interessante notar que Pedro atribui a salvação não apenas à misericórdia, mas também à fidelidade e justiça de Deus, que é fiel e justo para perdoar os nossos pecados por causa da obra expiatória de Cristo, o Justo e Justificador, que é a propiciação pelos nossos pecados (1 Jo 1.9; 2.1-2).

Deus chama e capacita.

“Deus nos concedeu todas as condições necessárias para a vida e a piedade” (1.3). Assim como faz cair a chuva, propiciando por sua graça as condições necessárias para que a terra produza os seus frutos (Hb 6.7).

Deus nos chama através de sua glória e virtude. A glória de Deus atrai e conquista. Exemplo: 1) Moisés (Ex 33.19-19 e o cap. 34 mostra Moisés vendo a glória de Deus protegido na rocha); 2) Pedro testemunhou a transfiguração, 3) “Vimos sua glória cheio de graça e de verdade” (Jo 1.14).

Através de sua glória e virtude, Deus nos deu grandes e preciosas promessas.

Quais são estas promessas?

1. Não são promessas mundanas, efêmeras e falsas, tais como: “trabalhe duro e você prosperará”; “economize e você terá uma aposentadoria tranquila”, pois, promessas deste tipo, frequentemente, não se cumprem devido a diversos fatores como desemprego, crises econômicas, traição, enfermidades, acidentes, morte precoce. Na melhor das hipóteses, tais conquistas são transitórias. (Não acumuleis tesouros na terra... Louco, hoje, pedirão a tua alma e o que tens preparado para quem será?... De que aproveita ao homem ganhar o mundo todo e perder a alma... Tudo é vaidade!).

2. As promessas de Deus são preciosas e eternas: Vida Eterna, Ressurreição, Céu, Dom do Espírito, que estaria conosco até o fim, participar da natureza divina, tornar-se filho de Deus.

“Participar da natureza divina” (1.4).

O que não significa tornar-se deus, pois Deus é único, e nem significa ser absorto em Deus numa espécie de panteísmo, mas tem a ver transformação moral, “Deus nos concedeu todas as condições necessárias para uma vida de santidade e piedade “ (1.3), para vivermos como filhos de Deus, e para “escaparmos da corrupção deste mundo” (1.4). O Evangelho é poderoso não apenas para perdoar, mas também para transformar, pois Deus já nos deu tudo de que precisamos para um novo viver.

2) O que devemos fazer, agora?

“Por isso, façam todo o esforço”... (1.5)

O trabalho de Deus a nosso favor e em nós deve ser a base e o incentivo para o nosso próprio esforço para o crescimento espiritual. Deus nos deu graça e todas as condições para a vida e a piedade (1.3), "por isso" devemos nos esforçar para cumprir a nossa parte. Paulo ensinou mesmo a Igreja de Corinto "Caríssimos, já que temos tais promessas, vamos purificar-nos de toda mancha do corpo e do espírito. E levemos a cabo a nossa santificação no temor de Deus" (2 Co 7.1). Assim, compreendemos melhor o que Jesus quis dizer com a frase: “...o reino dos céus é tomado por esforço, e os que se esforçam se apoderam dele” (Mt 11:12) e também o que está registrado em Lucas 13:23-30 “E alguém lhe perguntou: Senhor, são poucos os que são salvos? Respondeu-lhes: Esforçai-vos por entrar pela porta estreita, pois eu vos digo que muitos procurarão entrar e não poderão”. Jesus advertiu seus discípulos dizendo: "Se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus (Mt 5.20). “Desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor” Fl 2.12, pois “...de Deus somos cooperadores” (I Cor 3:9). "Empenhem-se para serem encontrados por ele em paz, imaculados e inculpáveis" (2 Pe 3.14). "Não sabeis que os que correm no estádio, todos, na verdade, correm, mas um só leva o prêmio? correi de tal maneira que o alcanceis" (1Co 9.24,25). "Segui a paz com todos e a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor, atentando, diligentemente, por que ninguém seja faltoso, separando-se da graça de Deus" (Hb 12.14-15).

Devido ao fato de Deus já ter nos dado gratuitamente todo o necessário para uma vida piedosa, inclusive preciosas promessas e a participação na natureza divina, devemos agora nos esforçar para fazer nossa parte no aprimoramento das 8 virtudes cristãs aqui mencionadas:

8 Virtudes a serem nutridas e aperfeiçoadas em nós:

1. fé,
2. virtude moral,
3. conhecimento (discernimento moral e espiritual),
4. autocontrole (comida, bebida, sexo, comunicação, temperamento, uso do tempo (2 Tm 1.7),
5. perseverança (na fé, na esperança e no amor em meio as provações),
6. piedade (temor e reverência decorrentes da consciência da presença de Deus em toda a esfera da vida),
7. afeto mútuo e fraterno e, por fim,
8. o amor que é a essência de Deus.


Começamos pela fé e terminamos no amor! "Sem fé é impossível agradar a Deus" e o amor é o Grande Mandamento, a essência de Deus e o sinal do verdadeiro cristão "...Aquele que não ama não conhece a Deus, pois Deus é amor... e aquele que permanece no amor permanece em Deus, e Deus, nele" (Jo 4.8,16).

Não é errado questionar nossa experiência de salvação:

Pois o próprio Paulo exorta: "Examinem-se para ver se vocês estão na fé; provem-se a si mesmos. Não percebem que Cristo Jesus está em vocês? A não ser que tenham sido reprovados" (2Co 13.5). E João escreveu seu livro para levar certeza para os salvos, afirmando que existem frutos como evidência para a salvação: "Nós sabemos que passamos da morte para a vida, porque amamos aos irmãos. Quem não ama permanece na morte" (1Jo 3.14); A fé salvadora é aquela que opera por meio do amor (Gl 5.6), pois a "fé sem obras é morta" (Tg 2.26); crentes sem frutos não encontram base para segurança da sua salvação (Jo 15.2). Temos que entender que a natureza da salvação não se resume a justificação, mas também inclui regeneração, santificação e, por fim, glorificação.

Fomos chamados para ser e fazer discípulos e não apenas "crentes".

Pedro combate a heresia de que é possível aceitar a Jesus apenas como Salvador, mas não necessariamente como Senhor, apenas pela fé, sem que seja necessário o arrependimento, o erro de pensar ser possível ser apenas "crente" sem ser discípulo, ensinando também que não seria necessário tomar cuidados para conservar e desenvolver a salvação. Mas a fórmula correta para a salvação é fé + arrependimento. A razão porque um só destes elementos é citado em alguns textos deve-se ao fato do outro já estar implícito, como no caso da conversão do centurião em Atos 16. Salvação envolve tanto justificação quanto regeneração. Não se pode ter um sem o outro (Tt 3.5-7). Jesus nos enviou para fazer discípulos e não apenas "crentes" ou cristãos nominais, batizando e ensinando a obedecerem tudo o que Jesus ordenou (Mt 28.18-20).

Salvação e discipulado são idênticos.

Responder ao chamado de Cristo é tornar-se Seu discípulo. O Novo Testamento enfatiza o Senhorio de Cristo e o discipulado. São 664 registros de Jesus como Senhor e 24 como Salvador; e 284 vezes aparece o termo discípulo e 3 vezes o termo cristão. Sendo artificial qualquer distinção entre discípulo e cristão (At 5.14; 6.1). Evangelismo que omite a mensagem de arrependimento e o preço do discipulado não merece ser chamado de Evangelho. Fé e obediência são inseparáveis. Paulo escreveu a Tito a respeito daqueles que professam conhecer a Deus, mas que por sua desobediência provam sua falta de fé (Tt 1.16). Para ser salvo a pessoa precisa confessar o senhorio de Cristo (Mt 7.21-23; Lc 6.46-49, Rm 10.9, 13, 1 Co 12.3). É necessário renunciar ao ego, como exortou Jesus "Se alguém quiser ser meu discípulo, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Pois quem quiser salvar a sua vida, a perderá, mas quem perder a sua vida por minha causa, a encontrará. Pois que adiantará ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma? (Mt 16.24-26). Jesus não pode ser Salvador sem Ser Senhor. Ele é Senhor, e aqueles que o rejeitam como Senhor não podem usá-lo como Salvador. É necessário tê-lo como Senhor e não apenas Salvador, arrependimento e não apenas fé, ser discípulo e não apenas crente, segui-Lo e não apenas encontrá-Lo, obedecê-lo e não apenas amá-lo da boca pra fora, tornar-se uma bênção, e não apenas receber as bênçãos, dar e não apenas recceber, amar e não apenas ser amado, perdoar e não apenas ser perdoado, esforçar-se e não apenas esperar em Deus, multiplicar o talento e não apenas preservá-lo, buscar o Reino e não apenas aguardar, permanecer e não apenas iniciar o caminho, vencer e não apenas apenas contemplar a vitória de Cristo e dos heróis da fé, tudo isto com a capacitação do Espírito gracioso de Cristo.

Devemos ser frutíferos, senão...

As 8 virtudes mencionadas por Pedro não são um fim em si mesmas “porque estas coisas, existindo em vós e em vós aumentando, fazem com que não sejais inativos, inúteis e nem infrutíferos” (v.8). “Pelos seus frutos os conhecereis” (Mt 7.20). “Pois aquele que não possuem estas virtudes é cego e míope e esqueceu da purificação de seus pecados” (v.9).Precisamos tomar cuidado para confirmar o nosso chamado e eleição, precisamos cuidar para não tropeçar (v.10), pois é desta maneira que nos será amplamente suprida a entrada no reino eterno (v.11). “Aquele que perseverar até o fim será salvo” (Mc 13.13; Jo 8.31), “ao vencedor, que guardar até o fim as minhas obras...” (Ap 2.26). E Paulo disse: “. . . mas esmurro o meu corpo, e o reduzo à escravidão, para que, tendo pregado a outros, não venha eu mesmo a ser reprovado. . . ” (1 Co 9:27). No capítulo seguinte, ele diz que a incredulidade do povo de Israel no deserto, a idolatria e os pecados morais que os israelitas cometeram, acabaram atraindo o juízo de Deus, de modo que a maioria dos israelitas ficaram reprovados e prostrados no deserto (1 Co 10:1-5). Paulo adverte que essas coisas serviram de exemplo para nós que fazemos parte da Igreja (1 Co 10.6). Ele disse em 1 Co 10:14 - “Amados, fugi da idolatria”. Fica claro que Paulo tinha a preocupação de que a Igreja de Corinto agisse tal como os israelitas e, conseqüentemente fosse reprovada. Veja 1 Co 10:11 - “Essas coisas lhes sobrevieram como exemplos, e foram escritas para advertência nossa. . .” e “Aquele, pois, que pensa estar em pé, cuide para que não caia” (1 Co 10:12). "Se alguém não permanecer em mim, será lançado fora, à semelhança do ramo, e secará: e o apanham, lançam no fogo e o queimam" (Jo 15.6). Por esta razão é que Pedro também adverte nesta mesma carta: “Porquanto se, depois de terem escapado das corrupções do mundo, pelo conhecimento do Senhor e Salvador Jesus Cristo, foram outra vez envolvidos nelas e vencidos, tornou-se-lhes o último estado pior do que o primeiro. Porque melhor lhes fora não conhecerem o caminho da justiça, do que, conhecendo-o, desviaram-se do santo mandamento que lhes fora dado. Deste modo sobreveio-lhes o que por um verdadeiro provérbio se diz: O cão voltou ao seu próprio vômito, e a porca lavada ao lamaçal” (2 Pe 2:20-22). O autor de Hebreus também adverte para o risco de se perder a salvação e da necessidade da perseverança para se alcançar a promessa (Hb 6.4-8, 12; 10.26-38). O autor de Hebreus apresenta uma boa ilustração sobre o relacionamento da graça de Deus e as boas ações humanas, demonstrando que aqueles que recebem a graça devem produzir os respectivos e esperados frutos: "Porque a terra que absorve a chuva que frequentemente cai sobre ela e produz erva útil para aqueles por quem é também cultivada recebe bênção da parte de Deus, mas, se produz espinhos e abrolhos, é rejeitada e perto está da maldição; e o seu fim é ser queimada" (Hb 6.7-8). Esta é a mesma lição que Jesus dá nas parábolas do Talentos (Mt 25.14-30), dos Lavradores Maus (M 21.17-44), Servo Infiel (Mt 24.45-51; Lc 12.35-48), Dez Virgens (Mt 25.1-13), Julgamento das Nações (Mt 25.31-46), Parábola da Figueira infrutífera (Lc 13.6-9). O ensino é claro, quem não multiplica o talento, os lavradores maus, os servos infiéis, as virgens imprudentes, os mau feitores, a figueira infrutífera, o que não está dignamente trajado (Mt 22), o que é morno em sua conduta e devoção cristã (Ap 2.15-16), todos estão sujeitos à condenação no juízo final. O ramo, mesmo estando ligado a Videira Verdadeira, se não der fruto, está pronto para ser cortado e lançado fora (Jo 15.2), assim também o sal que se tornar insípido e imprestável é jogado fora (Mt 5.13), e aquele que é morno em sua conduta cristã está prestes a ser vomitado por Deus (Ap 2.15-16).

Onde foi parar o Temor do Senhor?

A Bíblia dá muita ênfase ao temor do Senhor tanto no Antigo como também no Novo Testamento. Foi a primeira coisa que Deus exigiu de Israel quando o chamou para ser seu povo e andar condignamente (Dt 10.12,13). Devemos temê-lo pois Deus é Santo, reto, justo, imenso, todo poderoso, majestoso e esplendidamente belo e incomparável: "Quem entre os deuses é semelhante a ti, Senhor? Quem é semelhante a ti? Majestoso em santidade, terrível em feitos gloriosos, autor de maravilhas?!" (Ex 15.11). Pedro está lidando com esta falta de temor a Deus: "Em primeiro lugar, vocês devem saber que nos últimos dias aparecerão pessoas que zombaram de tudo e se comportarão ao sabor de seus próprios desejos" (2 Pe 3.3). Quando não há o devido temor a Deus, as pessoas sentem-se livres para pecar. Deus é santo, mas as pessoas não estão dando a devida atenção a questão do pecado, que é algo tão contrário a natureza divina. Não há mais temor do Juízo Final. Mas Pedro adverte: "O dia do Senhor chegará como um ladrão, e então os céus se dissolveram com estrondo, os elementos se derreteram, devorados pelas chamas, e a terra desaparecerá com tudo o que nela se faz. Em vista dessa desintegração universal, qual não deve ser a santidade de vida e piedade de vocês, enquanto esperam e apressam a vinda do Dia de Deus? Nesse dia, ardendo em chamas, os céus se dissolverão, e os elementos se fundirão consumidos pelo fogo." (2Pe 3.10-11). É de arrepiar também a descrição do grande dia da Ira de Deus, quando os impenitentes clamaram aos montes e as pedras, dizendo: “desmoronem por cima de nós, e nos escondam da Face daquele que está no trono, e da ira do Cordeiro. Pois chegou o grande Dia da sua ira. E quem poderá ficar de pé?” (Ap 6.12-17).

Hoje em dia, há uma falta de temor tão grande, que tem até muito crente falando como se fosse divertido encontrar o olhar do Deus Todo Poderoso. Quanta irreverência! É melhor pensarem com mais seriedade. Deus não é brincadeira. Onde foi parar a percepção da sublime majestade de Deus? Como bem observou Pratney em seu livro A Natureza e o Caráter de Deus (Editora Vida, 2004, p.290): "Estão tratando Deus como se ele fosse uma amigo informal e mortal, aproximando-se dele de forma superficial, com a irreverência de um tapinha nas costas. As pessoas pensam pouco ou nada ao blasfemar seu nome repetidamente em uma conversa comum, os comediantes zombam dele publicamente numa toada profana, e a mídia lida com questões de vida ou morte como se o julgamento e a eternidade fossem mitos populares e simples entretenimento ameno. Não há senso apropriado algum de deferência e honra, nenhuma sensibilidade à dignidade e à glória de Deus." No entanto, o profeta Isaías diante de uma visão de Deus, gritou: "Ai de mim!" (Is 6.1-5); o Apóstolo João, apavorado, caiu como se estivesse morto ao contemplar o fulgor glorioso da face de Cristo (Ap 1.16,17); e os que foram para prender Jesus, recuaram e caíram por terra quando ele disse: "Eu sou" (Jo 18.6); os anciãos se prostraram cinco vezes diante daquele que está assentado no trono (Ap 4.10), a voz do Senhor é poderosa e majestosa como trovão e faz tremer o deserto (Sl 29.3-8) e é também sublime a ponto de fazer arder os corações dos discípulos no caminho de Emaús! (Lc 24.32).

Pedro está procurando em sua carta restaurar o temor do Senhor, sabendo que este temor afasta os homens do mal. Ele chama atenção para o juízo de Deus que é certo sobre os perversos (2 Pe 2.3-22 e ver também 1 Pe 4.17). Paulo, semelhantemente adverte: "Não se deixem enganar: de Deus não se zomba. Pois o que o homem semear, isso também colherá. Quem semeia para a sua carne, da carne colherá destruição; mas quem semeia para o Espírito, do Espírito colherá a vida eterna. E não nos cansemos de fazer o bem, pois no tempo próprio colheremos, se não desanimarmos" (Gl 6.7-9). O temor do Senhor ainda é o princípio da Sabedoria e o conhecimento do Santo ainda é entendimento! (Pv 9.10).

Conclusão:

Tendo Deus nos concedido tudo o que necessitamos para a vida cristã, portanto o cristão precisa fazer a sua parte, começando pela fé que é a porta de entrada para o desenvolvimento das virtudes morais que, nutridas em nós, confirmam nosso chamado e nos garantem a entrada nos céus. Podemos dizer que a salvação é dádiva de Deus, recebida por fé e mantida e desenvolvida com cuidado, dedicação, empenho e perseverança pessoal possibilitados pela capacitação do Espírito Santo. Como disse Andrew Murray “Em primeiro lugar, preciso aceitar, confiar e regozijar-me na obediência de Cristo para cobrir, engolir e aniquilar terminantemente toda minha desobediência. Essa precisa ser a base inabalável, invariável, jamais esquecida, da minha aceitação por Deus. E, depois, a obediência dele torna-se o poder de vida da nova natureza em mim – assim como a desobediência de Adão era o poder que me governava até então. A minha sujeição à obediência é a única maneira que posso manter a minha relação com Deus e com a justiça. A obediência de Cristo à justiça é o único começo de vida para mim; minha obediência à justiça é sua única continuação. Tão certamente como a desobediência e a morte foram a lei para Adão e sua semente, a obediência e a vida o são para Cristo e sua descendência.”

"Portanto, amados, sabendo disso, guardem-se para que não sejam levados pelo erro dos que não têm princípios morais, nem percam a sua firmeza e caiam. Cresçam, porém, na graça e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. A ele seja a glória, agora e para sempre! Amém." (2 Pe 3.17 e 18)
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*Bispo José Ildo Swartele de Mello: Casado com Ana Cristina, pai de três filhos: Samuel, Daniel e Rafael, é também Professor de Teologia, Escatologia e Evangelização na Faculdade Metodista Livre. Formado em Bacharel pela Faculdade Metodista Livre, cursou Mestrado em Teologia na Faculdade Teológica Batista de São Paulo e fez Doutorado em Ministério na Faculdade Teológica Sul Americana. Pastor desde 1986 (Cidade Ademar 86-88; Vila Guiomar 89; Vila Bonilha 90-97, Aeroporto 98-2004), serve atualmente como Pastor da Imel de Mirandópolis, como Bispo da Igreja Metodista Livre do Brasil e como presidente do Concílio Mundial de Bispos.

Para acompanhar e saber um pouco mais sobre Bispo Ildo Melo, sua trajetória e suas atividades na web e na Igreja Metodista Livre, acesse: http://metodistalivre.org.br/
Blog:
http://escatologiacrista.blogspot.com/
Igreja:
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Vídeos:
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Estudos:
http://scribd.com/ildomello
Twiter: http://twitter.com/ildomello

Bibliografia:

Carson, D. A. Becoming conversant with the emergin church.
Pratney, W. A. A Natureza e o Caráter de Deus: A magnífica doutrina da salvação ao alcance de todos. Tradução Marson Gudes. São Paulo, Editora Vida, 2004


Foto: Bispo José Ildo Swartele de Mello.

Vacuidade teológica e sistemática.

Vacuidade teológica e sistemática.

As questões de ordem soteriológicas estão envolvidas em ambiguidades e paradoxos. Em meio a essas questões, muitas premissas são afirmadas e defendidas calorosamente, quase como certeza indubitável, porém, uma série delas não desemboca em conclusões coerentes.

A Teologia Reformada, primeiramente na figura de João Calvino, se preocupou em sistematizar seus argumentos teológicos, buscando, através dessa construção sistemática, organizar sua teologia. Embora que, com essa preocupação, o famoso teólogo francês não tenha se valido integralmente da lógica formal, a preocupação em construir argumentos sólidos é visível. Por exemplo, nas Institutas percebe-se Calvino se desgastando em ordenar suas ideias. Com os filósofos reformados contemporâneos a tentativa continua, por exemplo, vê-se entre eles a preocupação em construir argumentos filosóficos a fim de corroborar as teses reformadas.

Apesar de a sistematização ser muito importante, ela nem sempre é eficaz para impedir falhas argumentativas, ou, inadequação sistemática. A sistematização nem sempre preenche o vácuo aberto por uma questão, em outras palavras, nem sempre, a construção sistemática de um ideário filosófico/teológico consegue solucionar todos os problemas que se levantam, pelo contrário, muitas vezes, para manter a construção em pé, alguns problemas são simplesmente ignorados, ou, evitados. Uma das questões pouco abordada se refere aos atributos não perdido pelo homem após a queda.

Apesar de muito se falar sobre a queda, pouco se problematiza sobre a ausência de os seus efeitos em alguns aspectos. Na maioria das vezes, quando se problematiza a questão, ela é trabalhada apenas sobre perspectivas viciadas.

Fala-se que o homem, sendo um ser caído pelo pecado, é incapaz de exercer escolhas efetivas. Fala-se também, que sendo Deus soberano - o homem não pode ter livre-arbítrio. Para sairmos da tendência de nos apegarmos às respostas teologicamente viciadas, uma indagação se faz pertinente, a saber: Por que, entre os reformados, se admite que a queda acabou com o livre-arbítrio, como consequência natural do pecado, e não se questiona o porque que, em nossa natureza caída, ainda permanece viva e ativa a nossa capacidade de pensar, raciocinar, refletir, ou duvidar? Por que, tem-se por inadmissível a possibilidade de um ser soberano conviver com o livre arbítrio de suas criaturas, mas admite-se o fato de as criaturas, mesmo caídas terem o poder de duvidar de esse ser soberano? Por que se admite com tanta puerilidade que a perda da capacidade de exercer o livre-arbítrio após o pecado é a conseqüência natural do pecado praticado pelo ser humano, sem problematizar o porquê a capacidade de pensar, raciocinar, refletir, ou duvidar não foi perdida na queda? O que seria a dúvida? O que, a nossa capacidade de duvidar pode nos indicar?

O filósofo francês Jean Lacroix, encontra na dúvida, um traço do livre arbítrio. Ele afirma: “A dúvida é sempre possível porque a ideia não se afirma jamais em nós sem nós, porque o assentimento depende sempre de nosso querer, porque nossa atenção é livre”(1) E em outro momento afirma:

“É, portanto, em minha capacidade de recusa e de não adesão, em meu poder de negação, em minha negatividade, como teria dito Hegel, nesta potência em escapar a todas as vertigens, que Renovier chamava de “nolonté”(2), que se manifesta antes de tudo minha liberdade: ser livre é ser capaz de dizer não. A dúvida representa o exercício mesmo do livre arbítrio e sua prova primeira e fundamental, pois permite romper o contato e tomar posição. Antes da dúvida, eu estou como se não existisse, vivendo confusamente em um mundo de aparências, prevenido pela vida do corpo ou da sociedade, movido por uma espécie de opinião, de origem sensorial ou social, que não depende de mim e que de maneira alguma me expressa”.(3)

Será que realmente podemos afirmar com Lacroix que “a dúvidas representa o exercício mesmo do livre arbítrio e sua prova primeira e fundamental”? – Sem o livre arbítrio, a dúvida seria possível? Posso duvidar de Deus, não sendo capaz de pensar de maneira livre? - Antes de consumar o pecado, qual foi o fenômeno que incitou o pecado do primeiro casal? – Não foi à dúvida? Se cressem realmente, efetivamente, integralmente, sem nenhuma dúvida pairando em suas mentes, sobre as consequências advertidas por Deus pela prática de seus atos desobedientes, teriam Adão e Eva desobedecidos. No primeiro casal, o ato de duvidar, não estava enredado no ato de exercer o livre-arbítrio?

Elias, o profeta do Senhor, estando por apresentar o poder de Deus diante de um Israel idólatra, faz a seguinte asseveração: “Até quando coxeareis entre dois pensamentos? Se o SENHOR é Deus, segui-o, e se Baal, segui-o.” (1Rs 18.21). Quando Elias apresenta o quadro de um Israel coxeante ele está a apresentar a figura de um povo hesitante e duvidoso, um povo que não sabe bem ao certo qual deus deve seguir. Um povo hesitante entre deuses, é um povo que duvida, pelo menos em certo grau, da capacidade dos deuses que se lhe foi apresentado. Um povo que duvida, pelo menos em última análise, é um povo que não aceita uma ideia imposta; a dúvida pressupõe desejo de praticar uma escolha ou de alcançar a verdade. Diante da dúvida do povo de Israel, o que faz Elias? – Convida o povo a praticar uma escolha: Se o SENHOR é Deus, segui-o, e se Baal, segui-o. No epsódio descrito, a dúvida caminha junto com o livre arbítrio. O que faz Elias diante de um povo coxente e duvidoso? Depois do convite, através de uma desafio aos profetas de Baal, apresenta a nulidade do deus Baal, e a eficácia e o poder do Deus de Israel,a fim de que a dúvida se desfaça, e o povo escolha o Deus de Israel.

A dúvida não indica busca por uma escolha? Se não temos o livre arbítrio, por que duvidamos, ou, como duvidamos? Se não fossemos livres para escolher entre uma ideia e outra – duvidaríamos do que nos é apresentado? Portanto, que sentido faria o livre arbítrio ser aniquilado após a queda, permanecendo no homem a capacidade de duvidar? Se realmente foi banido o livre-arbitrio, não seria também banida a dúvida, que em muitos casos afronta a revelação de Deus e que faz o homem questionar sua revelação, inclusive, homens participantes da nação escolhida, orientada e invsitida para divulgar seu nome? (Is 5.4) Se admitimos que na queda o homem perdeu a possibilidade de vivenciar escolhas efetivas, como fruto do pecado, pois a imagem e semelhança de Deus foi no homem anuviada, ou mesmo perdida, como preferem alguns, por que não estranhamos que o mesmo pecado não aniquilou ou encobriu nossa capacidade pensar, criar e refletir, como ocorreu com nosso livre-arbítrio; não são também esses atributos aspectos da imagem e semelhança de Deus?

Quando falamos de conclusões incorentes, como isso estamos a falar nas brechas abertas nos sistemas de ideias que impossibilitam entres suas assertivas o assento da lógica. Como exemplo, vejamos o que está escrito nos Cânones de Dort (1618-1619):

“(...)De acordo com este decreto, Ele graciosamente quebranta os corações dos eleitos, por duros que sejam, e os inclina a crer. Pelo mesmo decreto, entretanto, segundo seu justo juízo, Ele deixa os não-eleitos em sua própria maldade e dureza. E aqui especialmente nos é manifesta a profunda, misericordiosa e ao mesmo tempo justa distinção entre os homens que estão na mesma condição de perdição. Este é o decreto da eleição e reprovação revelado na Palavra de Deus. Ainda que os homens perversos, impuros e instáveis o deturpem, para sua própria perdição, ele dá um inexprimível conforto para as pessoas santas e tementes a Deus.

Esta eleição é o imutável propósito de Deus, pelo qual Ele, antes da fundação do mundo, escolheu um número grande e definido de pessoas para a salvação, por graça pura. Estas são escolhidas de acordo com o soberano bom propósito de sua vontade, dentre todo o gênero humano, decaído pela sua própria culpa de sua integridade original para o pecado e a perdição.”

Observe estas palavras:

“Esta eleição é o imutável propósito de Deus, pelo qual Ele, antes da fundação do mundo, escolheu um número grande e definido de pessoas para a salvação, por graça pura”.

Compare com estas:

“Estas são escolhidas de acordo com o soberano bom propósito de sua vontade,dentre todo o gênero humano, decaído pela sua própria culpa de sua integridade original para o pecado e a perdição.”

Pode haver sentido lógico em um ideário que afirma que “Deus, antes da fundação do mundo, escolheu um número grande e definido de pessoas para a salvação, por graça pura” e também que o “gênero humano, é decaído pela sua própria culpa de sua integridade original para o pecado e a perdição.” - Se Deus já havia decretado os eleitos, antes da fundação do mundo, também já não havia, antes da fundação do mundo, banido da possibilidade da salvação as outras pessoas não incluídas na eleição? E se assim ocorreu, as pessoas reprovadas antes da fundação do mundo, podem, com justiça e coerência, serem acusadas pela sua má conduta? Se já haviam sido reprovadas antes de serem feitas ou de cometerem qualquer ato, que culpa podem levar se, por já serem antes da fundação do mundo não eleitas, não foram disponibilizadas de capacidade para agir de maneira diferente do que foram? Podem ser acusadas com justiça? Existe lógica na acusação? Existe lógica na construção dessa idéias?

Vários exemplos como esses de incoerência ideológica permeiam os sistemas teológicos adotados por várias comunidades eclesiásticas ou individualmente por muitos cristãos. Um sistema que não consegue coerentemente afirmar seus caminhos é um sistema sem direção. Um sistema de ideias que em seu entorno não apresenta aos seus seguidores respostas aos problemas levantados, pode até ser belo em vários aspectos, porém, se em muitas questões não consegue apresentar respostas plausíveis, nele percebe-se então, não a solidez ideativa, e sim, a vacuidade. O problema é que, preso nas construções sistemáticas, as pessoas nela envolvidas não conseguem perceber os espaços que ele não preenche. Envolvidas e acomodadas em certos sistemas de idéias, e por essa acomodação, não procura enfrentar questões que se apresentam, e até mesmo que os contradigam, por não conseguirem perceber as questões que ele nem aborda, nem problematiza, e, muito menos, e, por conseguinte, não soluciona.

Só podemos perceber possíveis problemas não resolvidos, se, com seriedade intelectual, perscrutarmos o sistema que adotamos a fim de perceber se ele está mais próximo da coerência ou da impropriedade. Essa prática deve ser uma prática obrigatória para todos aqueles que são chamados a praticar um culto racional e estar sempre preparados para responder com mansidão e temor a qualquer que pedir a razão da esperança em que se apegam (1 Pe.3:15).

Se o povo de Deus se perdeu por falta de conhecimento, devemos buscar, com auxílio da graça, conhecimento para seguir um caminho que melhor apresenta Deus, ou seja, a trilha de Cristo, que se apresenta como um Deus de amor, justo e bom, que não faz acepção de pessoas, e que julgará a cada um, realmente, segundo as suas obras, evitando seguir um caminho que apresenta um deus desfigurado, não mostrando nenhuma coerência entre suas ações estabelecidas e suas cobranças - direcionadas as pessoas que ele mesmo, por um prévio destino as condicionou.

Apregoar Deus é sempre, apregoar, amor, equidade, justiça e sabedoria. Qualquer sistema que apresenta como possíveis ações de Deus, atos incoerentes, que não são mediados por esses termos, tem em si uma vacuidade sistemática, uma incompletude ideativa, e, portanto, não pode ser defendido como uma boa teologia ou séria interpretação das escrituras e dos possíveis atos e desígnios de Deus.

Lailson Castanha
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(1) LACROIX, Jean. Marxismo Existencialismo Personalismo. Tradução de Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.
(2) Nolonté seria uma espécie de vontade negativa, por contraposição a volonté, vontade real. O termo foi mantido por não comportar a tradução a expressividade associativa do original. (N. do T.)
(3) LACROIX, Jean. Marxismo Existencialismo Personalismo. Tradução de Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.


terça-feira, 8 de novembro de 2011

O HOMEM – A HUMANIDADE

VIII. O HOMEM – A HUMANIDADE REV. AMOS BINNEY

Este termo genérico abrange toda a raça ou espécie de entes humanos, descendentes de Adão e Eva. Que a raça tem uma origem comum e que todas as variedades do homem têm a mesma natureza é ensinado nos seguintes textos. Gn 1.27, 28; 2.7, 18, 21-24; 3.20; Ml 2.10; At 17.26; Rm 5.12; 1Co 15.22, 45.

O homem é um ente composto, tendo um corpo mortal, e um espírito destituído de qualidades materiais, imortal, continuando a viver depois da separação do corpo em um estado de cônscia existência. Ec 3.21; 1Re 17.21, 22; Lc 8.55; 16.22, 23; 23.43; Mt 10.28; 22.32; At 7.59; 2Co 5.8; Fp 1.23; Ap 6.9-11; 14.13.

O corpo é formado do pó da terra dotado dos sentidos de tato, gosto, olfato, audição e vista. O espírito é racional, tendo entendimento, afeição e vontades. Gn 2.7; Ec 12.7.

Paulo fala de um terceiro elemento, a alma. 1Ts 5.23. Por ela quer ele falar do psiquê, a alma inferior ou animal, dotada de paixões e desejos a qual nós temos em comum com os animais, Ec 3.19-21, mas no cristão esta alma é enobrecida e espiritualizada. O espírito é aquela parte por onde podemos receber o Espírito Santo. No incrédulo, ela é subjugada e subordinada à alma animal e daí o homem é chamado “natural” ou meramente animal. 1Co 2.14; Jd 19.

O homem foi feito reto, Ec 7.29, isto é, em um sentido moral, por natureza semelhante a Deus, tendo retidão moral, chamado a imagem de Deus, Gn 1.27; explicado em Ef 4.24. Mas também foi feito agente responsável livre e noviço, colocado sob a lei divina, quebrando a qual, ele incorreu na pena da morte temporal e espiritual. Gn 2.16, 17; Rm 5.12; 6.23; Hb 2.14.

O primeiro pecado do primeiro homem mudou toda a sua natureza moral de santa para um estado de pecado, da qual condição mudada, sendo ela hereditária, tem participado todos os seus descendentes. Rm 5.12; 1Co 15.22; Ef 2.3, 5; Jó 15.14; Sl 14.2, 3; Sl 51.5; 58.3. Contudo cada um é responsável pelos seus pecados. Dt 24.16; 2Re 14.6; Pv 11.19; Ed 18.4, 20; Jr 31.30; Rm 1.20, 21; Jo 3.19, 20.

LIVRE AGÊNCIA

Posto que o homem tenha caído e esteja lamentavelmente depravado, de modo que há na sua natureza uma forte tendência para o pecado, todavia ele ainda retém o atributo divino da liberdade. Em toda opção de natureza moral, tem ele a liberdade de agir como lhe parece. Nenhum decreto de Deus, nenhuma combinação de elementos na sua constituição, o coage em sua ação moral.

O auxílio gracioso do Espírito Santo é somente persuasivo, não obrigatório. At 7.51; Ef 4.30; 1Ts 5.19. A vontade livre é uma causa original, determinadora de si mesma(1) e não efeito de causa nas suas opções. Ela é uma nova e responsável fonte de causa no universo.

Provas: 1. Consciência: “Eu sei que sou livre e está acabado.” – Dr. Samuel Johnson.

2. Semelhante liberdade é inferida do sentimento de obrigação moral e da convicção de culpa pelos nossos delitos.

“Se o homem tem de ser punido no futuro estado, Deus é quem há de punir.

“Se é Deus que pune, o castigo é justo.

“Se o castigo é justo, é porque o castigado podia ter obrado de outro modo.

“Se o castigado podia ter obrado de modo diverso, ele era agente livre.

“Portanto, se os homens têm de ser punidos no mundo vindouro, eles não podem deixar de ser agentes livres neste.”

3. As Escrituras em qualquer parte presumem que os homens são livres para obedecer à lei de Deus e conformarem-se às condições da salvação. Pv 1.23-31; Mt 23.37; Jo 7.17.

4. Se os atos morais dos homens são efeitos de causas determinadas por Deus, então Deus ou é o autor do pecado, ou seus próprios atos, sendo os efeitos de alguma coisa irresistível, tal como o motivo mais forte, ou a constituição de sua natureza. O universo está debaixo da lei de ferro do acaso e o pecado é uma ilusão e uma impossibilidade.
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(1) “Determinadora de si mesma.” – A expressão é infeliz e tem sido justamente criticada na controvérsia calvinista. A vontade é determinadora, não “de si mesma,” pois ela não precisa ser determinada, mas da conduta, do proceder duma criatura responsável.
Originou-se a expressão no argumento calvinista: “a vontade só opera à vista de motivos, portanto ela é motivada, ou determinada.” A resposta era: “não, ela é determinadora de si mesma.”
Mas, não éramos obrigados a escolher entre “uma vontade determinada por motivos” e “uma vontade determinadora de si mesma.” Optamos por uma vontade livre, causa simples e final. A vontade de Deus não é “determinadora de Si mesma,” ela determina, “e está acabado.” Assim, pela graça e sabedoria de Deus, o homem é dotado de uma vontade livre, simples, e, absolutamente, em certa esfera uma nova causa final no universo de Deus: uma vontade determinadora.
Sem motivos para exercer-se a vontade nunca se exerceria, justamente como Deus mesmo, sem causas para decidir, nunca poderia exercer a justiça, mas, em um e outro caso, resta sempre a capacidade de querer e a capacidade de ser justo. Deus nos deu uma faculdade de determinar: é a vontade.


BINNEY, Amos. Compendio de Teologia. Campinas: Editora Nazarena.
Gravura: Homem Vitruviano - de Leonardo da Vinci