Fé, razão e livre-arbítrio.
Desde sua época clássica, a filosofia, na prática de vários filósofos, motiva o homem a se auto conhecer. Com Sócrates os cidadãos gregos foram incentivados a fazer uma análise profunda, reflexiva, sobre si próprios. Percebe-se essa chamada na famosa fórmula: conheça-te a ti mesmo. A chamada socrática não influiu apenas na Grécia Clássica, causou um influxo na cultura ocidental. A busca pela compreensão de si próprio, endossada por Sócrates, foi continuada pelo seu discípulo Platão - que define o homem como um animal capaz de ciência.(1). Aristóteles corrobora seu mentor afirmando que “o homem é o único animal que possui razão” com essa razão o homem é capaz de julgar o que é bom ou mau para si e também o que é justo e injusto.(2). O filósofo de Estagira não encerra sua definição do homem como sendo um ser racional, na sua obra Política, afirma que o homem é um animal político (Zoon Politikon) pois, é na pólis (cidade estado) e através dela, que o homem constrói sua existência. Aristóteles entendia que o homem tanto vive na pólis como vive para a pólis.
Não se pode se auto conhecer ignorando as estruturas que estão por trás de sua formação existencial. O legado dos filósofos clássicos, que tentando compreender o que é e como é o ser humano, estudando a estrutura que o sustenta, ajuda-nos a compreender o que somos e por que somos como somos. Não podemos nos conhecer sem examinar a estrutura que nos sustenta. Seguindo a orientação de Platão e Aristóteles arrogamo-nos seres racionais e encontramos nessa característica o aspecto fundamental que nos distingue dos demais animais. Assim, afirmamo-nos racionais e tratamos os demais seres como irracionais.
Em tempos hodiernos os termos outrora usados perderam sua força descritiva, por essa razão, afirmarmo-nos como seres racionais com a intenção de, com essa conceituação, definir nossa identificação existencial. Portanto, não basta, afirmamo-nos seres racionais, é preciso compreender o significado efetivo da razão. Afinal, o que é ser um ser racional? Grosso modo ser racional é ter uma vivência pautada na razão, ou seja, é um ser que busca parâmetros lógicos, ou que se posiciona sobre quaisquer coisas a partir de questionamentos. O filósofo italiano Nicola Abbagnano, entre outras explicações, assim define o termo razão: “Referencial de orientação do homem em todos os campos em que seja possível a indagação ou a investigação. Nesse sentido podemos dizer que a razão é uma 'faculdade' própria do homem, que o distingue dos animais.”(3) Portanto, se somos seres racionais, somos seres orientados por nossos juízos, modelado pelas percepções racionais.
Como seres animais percebemos a importância da razão, mas, no âmbito espiritual, podemos excluir a nossa característica racional na busca de uma vivência espiritual? Pode-se viver cristianismo sem o uso de nossa racionalidade?
Falando sobre um dos momentos mais sérios do culto cristão, em que é rememorada a morte de Cristo, a chamada Santa Ceia, o apóstolo Paulo exortava os crentes de Corinto, que não se portavam na ceia de maneira adequada, da seguinte forma: “Examine-se, pois, o homem a si mesmo (...)” (1 Co11:28a). Em outro momento, ainda endereçando sua fala aos coríntios o apóstolo afirma: “Examinai-vos a vós mesmos, se permaneceis na fé; provai-vos a vós mesmos.”(2 Co 13.5). Chamar o homem a se autoexaminar é entre outras coisas evocar a sua racionalidade, convidá-lo a uma profunda reflexão sobre si mesmo. É convidá-lo a praticar juízos. É chamá-lo ao exercício sua autonomia como pessoa humana.
Observando essa questão com perspicácia perceberemos outras questões implícitas se apresentarem. Iniciaremos com a questão do convite paulino à prática do autoexame.
O autoexame bíblico.
O ser racional é um ser entre outras coisas, que busca compreender as coisas e encontrar um sentido que satisfaça sua razão. Podemos afirmar que essa é uma das características que compõe nossa identidade existencial. Existe em cada ser humano, mesmo na mais tenra idade, certo grau de curiosidade. Essa curiosidade é o desejo de conhecer e significar as coisas. Fomos feitos assim. Lendo a narrativa dos Gênesis percebemos já no primeiro homem esse desejo de compreender e dar significado. O fruto que comeu Adão e Eva foi o fruto “da árvore do conhecimento do bem e do mal”(Gn 2.17). Eva quando comeu o fruto, entre outras coisas, foi motivada pelo fato de ser a “árvore desejável para dar entendimento” (Gn 3.6). Com essas informações, podemos estabelecer então que o exercício de buscar compreensão faz parte da vivência racional, em outras palavras, faz parte da experiência humana. Não há homem em estado sadio que não deseje compreender as coisas que se apresentam em sua existência. Por isso, buscar entender o porque de uma exortação bíblica se configura como uma ação naturalmente humana, além de naturalmente cristã. Doravante, levantaremos a seguinte questão:
por que, com que propósito, o homem é exortado nas escrituras a se autoexaminar? Será que esse convite é apenas retórico, ou não tem nenhum real propósito?
O apóstolo Paulo é um dos personagens bíblicos que mais evoca a razão humana. Além de suas exortações citadas fala de um “culto racional” e reprova o culto ininteligível, por exemplo, num ambiente onde são pronunciadas línguas “desconhecidas” tornando a manifestação dos fiéis incompreensível ao entendimento do povo. Pode-se falar a respeito de Paulo que ele buscava na igreja a prática da espiritualidade unida a racionalidade. Com acerto afirma-se que Paulo desejava que os fiéis cristãos tivessem a clara percepção da fé que professavam e das práticas em que se envolviam. Portanto, o convite de Paulo ao autoexame tinha como real propósito fazer o cristão perceber se realmente estava em sintonia com a fé que afirmava adotar, com a finalidade última de fazê-lo se arrepender e se corrigir, caso percebesse desarmonia entre as ações praticadas e a fé professada. Nota-se, na preocupação de Paulo, um desejo de que os crentes percebam a necessidade de assumir, a partir, e com o favor da graça já alcançada, a responsabilidade pela manutenção de sua vida espiritual. Nesta ênfase paulina fica claro que o crente só poderá agir em prol de sua espiritualidade, com o uso de sua racionalidade, associada a graça de Deus – por isso é convocado pelo apóstolo a refletir sobre si mesmo.
“Assim, pois, Aquele que julga estar de pé, tome cuidado para não cair.” (1Co 10.12)
Autoexame como indicação de possibilidades condicionais.
Outra questão importante que a reflexão sobre autoexame bíblico suscita é a sobre a existência de possibilidades condicionais a partir das escolhas e práticas humanas. Se existe a necessidade da autoreflexão, é porque alguma coisa, com o consórcio da graça, deve fazer o homem em prol de si mesmo a fim de se apropriar da oferta dessa graça já atuante. Por intermédio de João, Cristo exorta a igreja de Éfeso com estas palavras: “Lembra-te, pois, de onde caíste, e arrepende-te e pratica as primeiras obras; e se não, brevemente a ti virei, e tirarei do seu lugar o teu castiçal, se não te arrependeres.” (Ap 2:5) A expressão “lembra-te” tem o mesmo apelo daquela usada pelo apóstolo Paulo na Epístola aos Coríntios, “examine-se a si mesmo” ou seja, incitar os crentes a prática da autorreflexão visando um concerto pessoal. A exortação de Cristo é marcada por uma advertência – o castiçal será tirado da igreja, caso ela não se arrependa. Portanto, o crente de Éfeso deve fazer uma autoanálise para perceber o seu erro, reconhecê-lo e se arrepender de sua prática. Somente assim, não lhe ocorrerá o infortúnio prometido pela profecia. Se não houvesse a necessidade da postura pessoal da prática do autoexame, isso poderia significar que a postura pessoal do homem não se faz necessária pois tudo estaria previamente determinado. Por outro lado, se os crentes são convocados a repensarem sobre suas práticas, é porque por Deus deseja uma postura pessoal em prol da continuidade da ação da graça, e esta postura será também, juntamente com a graça já atuante, determinante para a sua salvação.
Livre arbítrio percebido na experiência existencial e espiritual.
Além das passagens bíblicas, podemos nos valer de nossa experiência pessoal para perceber a importância de nossa razão. Juntamente com a importância do uso de nossa razão, em nossa existência podemos provar a efetividade de nosso livre-arbítrio. Diariamente somos colocados diante de escolhas. Cada passo tomado testemunha uma escolha adotada. Como diria Jean-Paul Sartre até escolher não escolher se configura como uma escolha, ou seja, negando o exercício de nossa liberdade, na opção por não usá-la, já estamos a usá-la. Quando pensamos sobre o que fazer, com nossa razão, estamos a praticar juízos e por fim, praticando escolhas. Na vivência de nossa espiritualidade, é clarividente o livre-arbítrio. Percebemos a luta da carne contra o Espírito, e como cristão, lutamos para satisfazer o Espírito. No alcance de nosso desejo, ou no lamento pelo fracasso, percebemos o nosso livre-arbítrio. Usando as palavras de Paulo, no bem que quero fazer ou no mal que não quero fazer. Na afirmação - bem que quero e mal que não quero – mesmo admitindo o predomínio da carne, o apóstolo destaca o seu desejo pessoal e sua reprovação pessoal, ou seja, o seu juízo sobre as coisas praticadas. A vivência de seus juízos é determinada pelo seu livre-arbítrio. Sem livre-arbítrio desejar não seria possível O apóstolo relata desejos. Seus juízos indicaram sua escolha, pendente mais aos desejos carnais por conta da falência da carne. Porém, o desejo de fazer o bem na totalidade da vida do apóstolo não foi frustrado, sua trajetória mostra que não, pois, posteriormente, ele mesmo testemunhou que combateu o bom combate e guardou a fé. Portanto, qual deve ser a atitude do cristão? Refletir sobre sua própria situação, a fim de perceber sua fragilidade e procurar andar no Espírito.
"Para a liberdade foi que Cristo nos libertou. Permanecei, pois, firmes e não vos submetais, de novo, a jugo de escravidão.
Vós corríeis bem; quem vos impediu de continuardes a obedecer à verdade?
Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade; porém não useis da liberdade para dar ocasião à carne; sede, antes, servos uns dos outros, pelo amor. Digo, porém: andai no Espírito e jamais satisfareis à concupiscência da carne." (Gl 4. 1-7-13-16)
O pensamento determinista não é encarnado.
Quem afirma crer na efetividade do livre-arbítrio mostra coerência entre a afirmação e vida com muita naturalidade. Cada escolha praticada, cada gesto de preocupação, cada momento de reflexão indica que ele leva a sério a ideia de que sua vida é pautada por escolhas e que suas escolhas são determinantes tanto para sua existência física quanto para sua vida espiritual. Até mesmo as pessoas que acreditam no determinismo, pensam seriamente sobre suas escolhas. Mesmo aquelas que dizem acreditar que até o querer do homem já está determinado, não agem como se acreditassem em tal coisa. Falam que todas as coisas já estão dispostas por Deus, mas lutam por refutar uma teologia contrária a sua, ou por convencer pessoas adeptas a correntes teológicas contrárias a adotarem a sua. Lutam, se enraivecem, se envaidecem e se gloriam, se caso acreditam terem conseguido encurralar ideias contrárias. Nenhuma delas, ou quase nenhuma, efetivamente professam com suas vidas práticas a predeterminação que professam com palavras. O que geralmente se percebe é a palavra desassociada da vida. Vê-se calvinistas, como qualquer arminiano exercendo o seu livre-arbítrio, por exemplo, no momento de trocar a denominação que dantes frequentava por aquela que professa a teologia que ele passou a adotar. Ou na escolha de sua faculdade, na luta por um melhor emprego, melhor candidato. Se for pai, jamais entregará a criança aos caminhos da predestinação afirmada. Pelo contrário, lutará pela sua salvação, pela sua saúde, pela sua vida estudantil ou trabalhista. Jamais ouvi um pai falar: Minha criança será o que Deus estabeleceu. Ela já está predeterminada, portanto descansarei. Pelo contrário tanto aqueles que afirmam o determinismo calvinista, como aqueles que acreditam que o seu livre arbítrio tem relação com os frutos que colherá na vida, e após ela, agem de tal forma a evidenciar o seu livre-arbítrio, pois traçam planos para si e para os seus. Apesar de crerem na soberania de Deus, não deixam de vivenciar suas opções. Tanto arminianos como calvinistas que não acreditam na liberdade de escolha, lutam por sua fé, como se estivesse a responder o seguinte desafio:
O céu e a terra tomo hoje por testemunhas contra ti de que te pus diante de ti a vida e a morte, a bênção e a maldição; escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e a tua descendência. (Dt 30.9)
Servo racional.
Diante das questões apresentadas, que parece provar - que nossa razão, juntamente com a graça, é fundamental para a vivência de uma vida santa e que nossas escolhas racionais em prol da ação da graça é o que define se somos ou não servos de Deus, podemos qualificar o cristão que conscientemente serve a Jesus com fé, como “servo racional”, aquele que, com o auxílio da graça, usa sua razão para investigar suas práticas e escolhas, para com isso, perceber se está ou não em sintonia com os caminhos do Mestre que o chamou.
O servo racional utiliza todos os meios que Deus lhe deu para combater o bom combate, cumprir a carreira e guardar a fé. Acolhe a graça e com o seu auxílio perscruta sua vida e medita na lei do Senhor. Racionalmente cultua a seu Deus. Com o bom uso de sua razão glorifica a Ele – e para alcançar tal feito constantemente pede orientação ao seu mestre que liberalmente lhe dá sabedoria (Tg 1.5) para que o servo racional use sua liberdade com qualidade fazendo sábias escolhas. O servo racional cheio do Espírito, também usa a sua razão para explicar a motivação que rege sobre a sua vida estando “sempre preparado para responder com mansidão e temor a qualquer que pedir a razão da esperança que há em nele.”(1Pe. 3.15)
Acreditando que a razão humana é fundamental para a efetiva vivência de uma vida cristã, como as orientações de Paulo parecem indicar, devemos acreditar também que o livre-arbítrio se faz fundamental, pois, admitindo a razão humana, deve-se acreditar na necessidade da prática de exercer juízos, apenas possível com a existência do livre-arbítrio, que possibilita a efetividade desta prática. Sem a liberdade de praticar juízos não haveria a possibilidade de um verdadeiro exame pessoal, como orienta o apóstolo Paulo e, por conseguinte, nenhuma escolha seria verdadeira, pois, sem o livre-arbítrio nossa razão não arrazoaria, por estar presa em juízos fora de si mesma. Ademais, se o exercício do autoexame não é possível, por que o apóstolo Paulo orienta igreja a praticá-lo?
Lailson Castanha
______
(1) ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia Nicola Abbagnano; tradução da 1ª edição brasileira coordenada e revista por Alfredo Bossi; revisão da tradução e tradução de novos textos Ivone Castilho Benedetti. 5ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
(2) Idem
(3) Idem
Desde sua época clássica, a filosofia, na prática de vários filósofos, motiva o homem a se auto conhecer. Com Sócrates os cidadãos gregos foram incentivados a fazer uma análise profunda, reflexiva, sobre si próprios. Percebe-se essa chamada na famosa fórmula: conheça-te a ti mesmo. A chamada socrática não influiu apenas na Grécia Clássica, causou um influxo na cultura ocidental. A busca pela compreensão de si próprio, endossada por Sócrates, foi continuada pelo seu discípulo Platão - que define o homem como um animal capaz de ciência.(1). Aristóteles corrobora seu mentor afirmando que “o homem é o único animal que possui razão” com essa razão o homem é capaz de julgar o que é bom ou mau para si e também o que é justo e injusto.(2). O filósofo de Estagira não encerra sua definição do homem como sendo um ser racional, na sua obra Política, afirma que o homem é um animal político (Zoon Politikon) pois, é na pólis (cidade estado) e através dela, que o homem constrói sua existência. Aristóteles entendia que o homem tanto vive na pólis como vive para a pólis.
Não se pode se auto conhecer ignorando as estruturas que estão por trás de sua formação existencial. O legado dos filósofos clássicos, que tentando compreender o que é e como é o ser humano, estudando a estrutura que o sustenta, ajuda-nos a compreender o que somos e por que somos como somos. Não podemos nos conhecer sem examinar a estrutura que nos sustenta. Seguindo a orientação de Platão e Aristóteles arrogamo-nos seres racionais e encontramos nessa característica o aspecto fundamental que nos distingue dos demais animais. Assim, afirmamo-nos racionais e tratamos os demais seres como irracionais.
Em tempos hodiernos os termos outrora usados perderam sua força descritiva, por essa razão, afirmarmo-nos como seres racionais com a intenção de, com essa conceituação, definir nossa identificação existencial. Portanto, não basta, afirmamo-nos seres racionais, é preciso compreender o significado efetivo da razão. Afinal, o que é ser um ser racional? Grosso modo ser racional é ter uma vivência pautada na razão, ou seja, é um ser que busca parâmetros lógicos, ou que se posiciona sobre quaisquer coisas a partir de questionamentos. O filósofo italiano Nicola Abbagnano, entre outras explicações, assim define o termo razão: “Referencial de orientação do homem em todos os campos em que seja possível a indagação ou a investigação. Nesse sentido podemos dizer que a razão é uma 'faculdade' própria do homem, que o distingue dos animais.”(3) Portanto, se somos seres racionais, somos seres orientados por nossos juízos, modelado pelas percepções racionais.
Como seres animais percebemos a importância da razão, mas, no âmbito espiritual, podemos excluir a nossa característica racional na busca de uma vivência espiritual? Pode-se viver cristianismo sem o uso de nossa racionalidade?
Falando sobre um dos momentos mais sérios do culto cristão, em que é rememorada a morte de Cristo, a chamada Santa Ceia, o apóstolo Paulo exortava os crentes de Corinto, que não se portavam na ceia de maneira adequada, da seguinte forma: “Examine-se, pois, o homem a si mesmo (...)” (1 Co11:28a). Em outro momento, ainda endereçando sua fala aos coríntios o apóstolo afirma: “Examinai-vos a vós mesmos, se permaneceis na fé; provai-vos a vós mesmos.”(2 Co 13.5). Chamar o homem a se autoexaminar é entre outras coisas evocar a sua racionalidade, convidá-lo a uma profunda reflexão sobre si mesmo. É convidá-lo a praticar juízos. É chamá-lo ao exercício sua autonomia como pessoa humana.
Observando essa questão com perspicácia perceberemos outras questões implícitas se apresentarem. Iniciaremos com a questão do convite paulino à prática do autoexame.
O autoexame bíblico.
O ser racional é um ser entre outras coisas, que busca compreender as coisas e encontrar um sentido que satisfaça sua razão. Podemos afirmar que essa é uma das características que compõe nossa identidade existencial. Existe em cada ser humano, mesmo na mais tenra idade, certo grau de curiosidade. Essa curiosidade é o desejo de conhecer e significar as coisas. Fomos feitos assim. Lendo a narrativa dos Gênesis percebemos já no primeiro homem esse desejo de compreender e dar significado. O fruto que comeu Adão e Eva foi o fruto “da árvore do conhecimento do bem e do mal”(Gn 2.17). Eva quando comeu o fruto, entre outras coisas, foi motivada pelo fato de ser a “árvore desejável para dar entendimento” (Gn 3.6). Com essas informações, podemos estabelecer então que o exercício de buscar compreensão faz parte da vivência racional, em outras palavras, faz parte da experiência humana. Não há homem em estado sadio que não deseje compreender as coisas que se apresentam em sua existência. Por isso, buscar entender o porque de uma exortação bíblica se configura como uma ação naturalmente humana, além de naturalmente cristã. Doravante, levantaremos a seguinte questão:
por que, com que propósito, o homem é exortado nas escrituras a se autoexaminar? Será que esse convite é apenas retórico, ou não tem nenhum real propósito?
O apóstolo Paulo é um dos personagens bíblicos que mais evoca a razão humana. Além de suas exortações citadas fala de um “culto racional” e reprova o culto ininteligível, por exemplo, num ambiente onde são pronunciadas línguas “desconhecidas” tornando a manifestação dos fiéis incompreensível ao entendimento do povo. Pode-se falar a respeito de Paulo que ele buscava na igreja a prática da espiritualidade unida a racionalidade. Com acerto afirma-se que Paulo desejava que os fiéis cristãos tivessem a clara percepção da fé que professavam e das práticas em que se envolviam. Portanto, o convite de Paulo ao autoexame tinha como real propósito fazer o cristão perceber se realmente estava em sintonia com a fé que afirmava adotar, com a finalidade última de fazê-lo se arrepender e se corrigir, caso percebesse desarmonia entre as ações praticadas e a fé professada. Nota-se, na preocupação de Paulo, um desejo de que os crentes percebam a necessidade de assumir, a partir, e com o favor da graça já alcançada, a responsabilidade pela manutenção de sua vida espiritual. Nesta ênfase paulina fica claro que o crente só poderá agir em prol de sua espiritualidade, com o uso de sua racionalidade, associada a graça de Deus – por isso é convocado pelo apóstolo a refletir sobre si mesmo.
“Assim, pois, Aquele que julga estar de pé, tome cuidado para não cair.” (1Co 10.12)
Autoexame como indicação de possibilidades condicionais.
Outra questão importante que a reflexão sobre autoexame bíblico suscita é a sobre a existência de possibilidades condicionais a partir das escolhas e práticas humanas. Se existe a necessidade da autoreflexão, é porque alguma coisa, com o consórcio da graça, deve fazer o homem em prol de si mesmo a fim de se apropriar da oferta dessa graça já atuante. Por intermédio de João, Cristo exorta a igreja de Éfeso com estas palavras: “Lembra-te, pois, de onde caíste, e arrepende-te e pratica as primeiras obras; e se não, brevemente a ti virei, e tirarei do seu lugar o teu castiçal, se não te arrependeres.” (Ap 2:5) A expressão “lembra-te” tem o mesmo apelo daquela usada pelo apóstolo Paulo na Epístola aos Coríntios, “examine-se a si mesmo” ou seja, incitar os crentes a prática da autorreflexão visando um concerto pessoal. A exortação de Cristo é marcada por uma advertência – o castiçal será tirado da igreja, caso ela não se arrependa. Portanto, o crente de Éfeso deve fazer uma autoanálise para perceber o seu erro, reconhecê-lo e se arrepender de sua prática. Somente assim, não lhe ocorrerá o infortúnio prometido pela profecia. Se não houvesse a necessidade da postura pessoal da prática do autoexame, isso poderia significar que a postura pessoal do homem não se faz necessária pois tudo estaria previamente determinado. Por outro lado, se os crentes são convocados a repensarem sobre suas práticas, é porque por Deus deseja uma postura pessoal em prol da continuidade da ação da graça, e esta postura será também, juntamente com a graça já atuante, determinante para a sua salvação.
Livre arbítrio percebido na experiência existencial e espiritual.
Além das passagens bíblicas, podemos nos valer de nossa experiência pessoal para perceber a importância de nossa razão. Juntamente com a importância do uso de nossa razão, em nossa existência podemos provar a efetividade de nosso livre-arbítrio. Diariamente somos colocados diante de escolhas. Cada passo tomado testemunha uma escolha adotada. Como diria Jean-Paul Sartre até escolher não escolher se configura como uma escolha, ou seja, negando o exercício de nossa liberdade, na opção por não usá-la, já estamos a usá-la. Quando pensamos sobre o que fazer, com nossa razão, estamos a praticar juízos e por fim, praticando escolhas. Na vivência de nossa espiritualidade, é clarividente o livre-arbítrio. Percebemos a luta da carne contra o Espírito, e como cristão, lutamos para satisfazer o Espírito. No alcance de nosso desejo, ou no lamento pelo fracasso, percebemos o nosso livre-arbítrio. Usando as palavras de Paulo, no bem que quero fazer ou no mal que não quero fazer. Na afirmação - bem que quero e mal que não quero – mesmo admitindo o predomínio da carne, o apóstolo destaca o seu desejo pessoal e sua reprovação pessoal, ou seja, o seu juízo sobre as coisas praticadas. A vivência de seus juízos é determinada pelo seu livre-arbítrio. Sem livre-arbítrio desejar não seria possível O apóstolo relata desejos. Seus juízos indicaram sua escolha, pendente mais aos desejos carnais por conta da falência da carne. Porém, o desejo de fazer o bem na totalidade da vida do apóstolo não foi frustrado, sua trajetória mostra que não, pois, posteriormente, ele mesmo testemunhou que combateu o bom combate e guardou a fé. Portanto, qual deve ser a atitude do cristão? Refletir sobre sua própria situação, a fim de perceber sua fragilidade e procurar andar no Espírito.
"Para a liberdade foi que Cristo nos libertou. Permanecei, pois, firmes e não vos submetais, de novo, a jugo de escravidão.
Vós corríeis bem; quem vos impediu de continuardes a obedecer à verdade?
Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade; porém não useis da liberdade para dar ocasião à carne; sede, antes, servos uns dos outros, pelo amor. Digo, porém: andai no Espírito e jamais satisfareis à concupiscência da carne." (Gl 4. 1-7-13-16)
O pensamento determinista não é encarnado.
Quem afirma crer na efetividade do livre-arbítrio mostra coerência entre a afirmação e vida com muita naturalidade. Cada escolha praticada, cada gesto de preocupação, cada momento de reflexão indica que ele leva a sério a ideia de que sua vida é pautada por escolhas e que suas escolhas são determinantes tanto para sua existência física quanto para sua vida espiritual. Até mesmo as pessoas que acreditam no determinismo, pensam seriamente sobre suas escolhas. Mesmo aquelas que dizem acreditar que até o querer do homem já está determinado, não agem como se acreditassem em tal coisa. Falam que todas as coisas já estão dispostas por Deus, mas lutam por refutar uma teologia contrária a sua, ou por convencer pessoas adeptas a correntes teológicas contrárias a adotarem a sua. Lutam, se enraivecem, se envaidecem e se gloriam, se caso acreditam terem conseguido encurralar ideias contrárias. Nenhuma delas, ou quase nenhuma, efetivamente professam com suas vidas práticas a predeterminação que professam com palavras. O que geralmente se percebe é a palavra desassociada da vida. Vê-se calvinistas, como qualquer arminiano exercendo o seu livre-arbítrio, por exemplo, no momento de trocar a denominação que dantes frequentava por aquela que professa a teologia que ele passou a adotar. Ou na escolha de sua faculdade, na luta por um melhor emprego, melhor candidato. Se for pai, jamais entregará a criança aos caminhos da predestinação afirmada. Pelo contrário, lutará pela sua salvação, pela sua saúde, pela sua vida estudantil ou trabalhista. Jamais ouvi um pai falar: Minha criança será o que Deus estabeleceu. Ela já está predeterminada, portanto descansarei. Pelo contrário tanto aqueles que afirmam o determinismo calvinista, como aqueles que acreditam que o seu livre arbítrio tem relação com os frutos que colherá na vida, e após ela, agem de tal forma a evidenciar o seu livre-arbítrio, pois traçam planos para si e para os seus. Apesar de crerem na soberania de Deus, não deixam de vivenciar suas opções. Tanto arminianos como calvinistas que não acreditam na liberdade de escolha, lutam por sua fé, como se estivesse a responder o seguinte desafio:
O céu e a terra tomo hoje por testemunhas contra ti de que te pus diante de ti a vida e a morte, a bênção e a maldição; escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e a tua descendência. (Dt 30.9)
Servo racional.
Diante das questões apresentadas, que parece provar - que nossa razão, juntamente com a graça, é fundamental para a vivência de uma vida santa e que nossas escolhas racionais em prol da ação da graça é o que define se somos ou não servos de Deus, podemos qualificar o cristão que conscientemente serve a Jesus com fé, como “servo racional”, aquele que, com o auxílio da graça, usa sua razão para investigar suas práticas e escolhas, para com isso, perceber se está ou não em sintonia com os caminhos do Mestre que o chamou.
O servo racional utiliza todos os meios que Deus lhe deu para combater o bom combate, cumprir a carreira e guardar a fé. Acolhe a graça e com o seu auxílio perscruta sua vida e medita na lei do Senhor. Racionalmente cultua a seu Deus. Com o bom uso de sua razão glorifica a Ele – e para alcançar tal feito constantemente pede orientação ao seu mestre que liberalmente lhe dá sabedoria (Tg 1.5) para que o servo racional use sua liberdade com qualidade fazendo sábias escolhas. O servo racional cheio do Espírito, também usa a sua razão para explicar a motivação que rege sobre a sua vida estando “sempre preparado para responder com mansidão e temor a qualquer que pedir a razão da esperança que há em nele.”(1Pe. 3.15)
Acreditando que a razão humana é fundamental para a efetiva vivência de uma vida cristã, como as orientações de Paulo parecem indicar, devemos acreditar também que o livre-arbítrio se faz fundamental, pois, admitindo a razão humana, deve-se acreditar na necessidade da prática de exercer juízos, apenas possível com a existência do livre-arbítrio, que possibilita a efetividade desta prática. Sem a liberdade de praticar juízos não haveria a possibilidade de um verdadeiro exame pessoal, como orienta o apóstolo Paulo e, por conseguinte, nenhuma escolha seria verdadeira, pois, sem o livre-arbítrio nossa razão não arrazoaria, por estar presa em juízos fora de si mesma. Ademais, se o exercício do autoexame não é possível, por que o apóstolo Paulo orienta igreja a praticá-lo?
Lailson Castanha
______
(1) ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia Nicola Abbagnano; tradução da 1ª edição brasileira coordenada e revista por Alfredo Bossi; revisão da tradução e tradução de novos textos Ivone Castilho Benedetti. 5ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
(2) Idem
(3) Idem