ASPECTOS DA VONTADE DE DEUS.
Introdução.
Lendo as Escrituras, em alguns momentos, nos deparamos com passagens que não se mostram claras a nossa percepção. Na tentativa de elucidá-las, recorremos a manuais teológicos e comentaristas, principalmente, aqueles ligados a tradição teológica que mais nos aproximamos ou com que mais simpatizamos. Porém, nos manuais em que pesquisamos, nem sempre alcançamos êxito em elucidar a questão em que nos deparamos. Por vezes as ideias apresentadas não satisfazem o nosso desejo de ter o problema solucionado. Diante de tal situação, podemos ser incitados a tomar algumas atitudes. A saber:
1. Resignar-nos diante do problema não procurando solucioná-lo.
2. Buscar esclarecimento em outros manuais e comentaristas, mesmo naqueles que desafiam o sistema teológico que abraçamos.
3. Buscar nas próprias páginas das Escrituras uma explicação à questão levantada.
4. Buscar compreensão ao texto através de outros textos bíblicos e com o reforço de manuais teológicos e comentários bíblicos.
A adoção da primeira opção leva o leitor a se assemelhar a alguém que engole um alimento sem saboreá-lo. Ou seja, deixa de sentir o prazer de uma leitura compreendida. Ler um texto, e abandoná-lo sem a devida compreensão não é um gesto coerente de quem busca conhecimento. As demais atitudes mostram que o leitor tem interesse pelo conhecimento ao buscar alternativas a fim de sanar o problema que se levantou.
As vezes alcançamos soluções a problemas bíblicos nas próprias páginas das Escrituras, porém, existem momentos em que sentimos a necessidade de nos valer de auxílios interpretativos para conseguirmos compreender um texto que não se mostra claro a nossa razão. Não são somente textos que se mostram obscuros a nossa mente, por vezes, alguns termos fazem nossa mente trabalhar quase que infecundamente em busca de compreensão para problemas que a adoção do termo engendra. Por exemplo, os termos abordados nas Escrituras como: eleição, predestinação, escolha, justiça, equidade, acepção de pessoas, etc. Sobre eles os diversos sistemas teológicos e filosóficos muitas vezes apontam para soluções irreconciliáveis e distantes uma das outras. Problemas ainda maiores encontraremos se pensarmos na interpretação de algum texto bíblico usando termos não literalmente bíblicos, como: livre-arbítrio, graça irresistível, graça preveniente, etc. Lendo os manuais, ou obras de grandes pensadores e comentaristas, encontramos informações interessantes sobre os termos ainda obscuros. Por exemplo, o termo graça preveniente pode ser encontrado em Anselmo da Cantuária, Tomás de Aquino, Jacobus Arminius e John Wesley. A abordagem de termos já desenvolvida pelos grandes pensadores e comentarias pode contribuir para a nossa compreensão e nos auxiliar na interpretação de textos que só farão sentido somente com a adoção de alguns conceitos extra-bíblicos, porém, implicitamente bíblicos.
Apesar da grande ajuda dos manuais e comentaristas bíblicos para uma maior compreensão das Escrituras e auxílio para a resolução de problemas encontrados em leituras bíblicas, muitas vezes conseguimos encontrar nas próprias páginas sacras soluções para os problemas que podem surgir a partir da leitura das Escrituras. Assumindo essa possibilidade, faz-se necessário, buscar a compreensão do texto, tendo em vista a visão panorâmica das Escrituras, ou interpretando cada passagem levando-se em consideração a coerência com os demais temas bíblicos. Com isso, nenhuma passagem deve ser interpretada isoladamente. Deve-se levar em consideração o macroambiente bíblico.
Por agora, faremos um esforço para compreender algumas questões de ordem soteriológica surgidas a partir do exame bíblico, buscando respostas nas próprias páginas das Escrituras.
1. A questão da graça, eleição e da irresistibilidade da graça.
A questão da eleição e da livre escolha do homem tem conturbado ao longo de séculos os debates teológicos. Apesar de as disputas em torno a temas soteriológicos serem mais brandas na hodiernidade, se comparado com as disputas travadas na ambiência medieval e também renascentista ou mesmo na era das luzes, elas ainda são intensas. Percebe-se com muita clareza a intensidade e atualidade desses temas na grande variedade de publicações editoriais e nos diversos sítios teológicos na Internet.
Quando se fala em eleição, alguns sistemas teológicos procuram definir esse termo se apropriando do termo soberania divina. Com isso, tencionam conceituá-lo como uma escolha direta e definitiva de Deus, e que, por conseqüência, não leva em conta a ação humana. Além disso, por conta de ser a eleição, uma escolha soberana Deus, é sempre certo, pensam, que o eleito a receberá sem restrições e jamais fará resistência a ela. Ao comentarmos sobre eleição, não podemos ignorar outro vocábulo importante: a graça. Da mesma forma que a eleição é uma escolha soberana e absoluta de Deus a finalidade última de sua graça, acredita-se, será absolutamente concretizada. Sendo a graça uma manifestação do favor de Deus aos homens tendo por fim último a redenção e salvação eterna, segundo essa linha de pensamento, fica evidente o fato de que, aqueles que não alcançaram ou não alcançarão a salvação, jamais foram alvo do gracioso favor de Deus, pois, se Deus tencionasse salvá-los, logo, sendo soberano, seu desejo se concretizaria.
Como qualquer afirmação, essa asserção deve passar por uma investigação. Sendo a boa investigação construída a partir de indagações, iniciaremos nossa averiguação com algumas perguntas.
Será que os conceitos graça e eleição estão sempre implicados nas Escrituras ao exercício de uma soberania absoluta que elimina qualquer possibilidade de ações contrárias a vontade de Deus?
Em absoluto, as Escrituram negam que a vontade de Deus pode ser resistida, ou é possível encontrar indícios bíblicos que apontam para o fato de que Deus, em muitos casos, permite que sua vontade seja resistida?
Comentávamos a pouco sobre a possibilidade de removermos problemas que se levantam a partir da leitura de textos bíblicos, ou de termos, usando as próprias páginas bíblicas para elucidá-los. Por exemplo, podemos compreender as advertências que faz o apóstolo Paulo e o escritor da carta aos Hebreus, orientando os destinatários de suas epístolas a perceberem e compreenderem a necessidade de se manterem vigilantes na caminhada espiritual, lendo o êxodo israelita do Egito à Canaã. O apóstolo Paulo e o escritor da epístola aos Hebreus ensinam o leitor bíblico a usar alguns textos do Testamento Antigo como figuras, ou sombras ou como exemplos de coisas que poderiam nos ocorrer (1Co 10.11); (Hb 3.11). Tanto o apóstolo Paulo, no capítulo 10 da epístola aos Coríntios, tanto o remetente da epistola aos Hebreus, nos capítulos 3 e 4, usam o fracasso do povo de Israel no deserto e a falta de êxito da maioria que saiu do Egito na tentativa de entrar na Terra Prometida, como exemplo e advertência aos destinatários de suas epístolas. Assim adverte o escritor da epístola aos Hebreus:
“Vede, irmãos, que nunca haja em qualquer de vós um coração mau e infiel, para se apartar do Deus vivo.
Antes, exortai-vos uns aos outros todos os dias, durante o tempo que se chama Hoje, para que nenhum de vós se endureça pelo engano do pecado;
Porque nos tornamos participantes de Cristo, se retivermos firmemente o princípio da nossa confiança até ao fim.
Enquanto se diz: Hoje, se ouvirdes a sua voz, Não endureçais os vossos corações, como na provocação.
Porque, havendo-a alguns ouvido, o provocaram; mas não todos os que saíram do Egito por meio de Moisés.
Mas com quem se indignou por quarenta anos? Não foi porventura com os que pecaram, cujos corpos caíram no deserto?
E a quem jurou que não entrariam no seu repouso, senão aos que foram desobedientes?
E vemos que não puderam entrar por causa da sua incredulidade.” (Hb 3.12 – 19)
E continua:
“Temamos, pois, que, porventura, deixada a promessa de entrar no seu repouso, pareça que algum de vós fica para trás.
Porque também a nós foram pregadas as boas novas, como a eles, mas a palavra da pregação nada lhes aproveitou, porquanto não estava misturada com a fé naqueles que a ouviram.
(...)Procuremos, pois, entrar naquele repouso, para que ninguém caia no mesmo exemplo de desobediência.” (Hb 4.1, 2 e 11)
Esta passagem bíblica ajuda-nos na elucidação dos conceitos bíblicos eleição e graça. Percebemos ao ler as advertências que o escritor não leva em consideração a possibilidade de uma graça e eleição absolutas. Ele se vale dos exemplos do passado, justamente por não se apegar a ideia de eleição pessoal pré-determinada e graça irresistível. A advertência do rementente pressupõe, a exemplo dos israelitas, a possibilidade de um não alcance da promessa por conta dos contados entre os escolhidos. Pode-se, sem forçar o texto, substituir Israel (que aqui é usado como figura) pela Igreja. Pode-se comparar o seu exemplo e as suas possibilidades com as da Igreja. Cada membro da comunidade de Israel é um tipo, um arquétipo de cada membro da comunidade da Igreja. Assim, como a cada israelita foi-lhes prometida a Terra de Canaã, a cada membro da Igreja, é prometido o acesso à Jerusalém Celestial. Assim como individualmente muitos israelitas não alcançaram a promessa, sendo que Israel a alçançou, mesmo a Igreja alçançando a promessa, muitos que estão contados entre o resgatados não a alçançarão. (2Pe 2.2).
Nas advertências dadas tanto por Paulo, como pelo remetende da espítola direcionada aos Hebreus, percebe-se uma preocupação em poupar os crentes do extravio. Essa preocupação, destaca a possibilidade de crentes se perderem e apesar disso, não existe o desejo por parte dos apóstolos de que se percam. Se os apóstolos eram homens inspirados por Deus, logo, podemos pensar que o desejo que deixaram explícito, implícito em seus cuidados, de que aqueles que poderiam cair, não caíssem, também era o desejo do Senhor. E, se o era o desejo de Deus, que os crentes não caíssem, fica evidente através da advertência dos apóstolos, de que crentes os quais Deus não deseja que caiam, cairão. Logo podemos pensar, com base bíblica, que nem toda vontade de Deus é estabelecida. É sobre essa questão que por agora abordaremos.
2. Vontade absoluta e vontade flexível de Deus.
É consenso entre boa parte de grupos cristãos o juízo sobre soberania de Deus. Apesar de o pensamento a respeito da soberania ser aceito por boa parte dos cristãos, a conceitualização ou noção dessa ideia não é tão homogênia. Enquanto boa parte dos cristãos implicam soberania divina em total e absoluto domínio sobre todos os eventos, outra parte não envolve o conceito de soberania de Deus na ideia de domínio absoluto.
Apesar de alguns textos parecerem corroborar a tese de que um Deus soberano tem sua vontade cumprida sobre todos os aspectos, a visão holística das Escrituras não atesta esse pressuposto. Podemos perceber nas Escrituras aspectos distintos da vontade de Deus, a saber:
Vontade absoluta, vontade última ou vontade definitiva. Podemos tratá-la também como vontade estrita; ou com qualquer termo que denota determinação rigorosa e irremovível.
Vontade flexível, vontade condicional ou vontade não absoluta. Podemos tratá-la também com qualquer termo que denota condições; (p.ex.: liberdade sob condições, ou salvo se; uma vez que, conquanto que...)
A afirmação de Jó nenhum dos seus planos podem ser frustrados (Jó 42.2) está relacionada ao aspecto absoluto, estrito, exato da vontade de Deus. Ele fala sobre a vontade última de Deus que não sofre interferências nem mesmo do próprio Deus. Quando Moisés afirma que Deus prometeu uma terra ao povo de Israel e o apóstolo Pedro afirma que a Igreja é a nação Eleita - relacionamos o desejo de Deus em dar a Terra Prometida a Israel e de eleger a Igreja como seu povo Santo a vontade definitiva de Deus, ou seja, é um desejo definitivo e isso significa dizer que nada mudará esse seu desejo e, por conseguinte, ele se realizará. Porém, o desejo de Deus, de que, exatamente, todos sejam salvos, tanto a totalidade de Israel, quanto da igreja está relacionado a vontade flexível de Deus, não sendo apresentado como vontade rigorosa. Quando lemos “Quantas vezes eu quis reunir os seus filhos, como a galinha reúne os seus pintinhos debaixo das suas asas, mas vocês não quiseram” (Mateus 23.37) percebemos claramente a vontade flexível de Deus. Deus gostaria que seu povo acolhesse seu desejo, porém, permitiu que o povo exercesse seu livre arbítrio para não acolher a sua vontade.
A vontade Flexível de Deus ainda pode ser percebida nas seguintes passagens:
“Veio para o que era seu, e os seus não o receberam.” (João 1.11).
“Que mais se podia fazer à minha vinha, que eu lhe não tenha feito? Por que, esperando eu que desse uvas boas, veio a dar uvas bravas?"(Is 5.4).
“Eu mesmo te plantei como vide excelente, uma semente inteiramente fiel; como, pois, te tornaste para mim uma planta degenerada como vide estranha?” (Jeremias 2:21).
“Homens de dura cerviz, e incircuncisos de coração e ouvido, vós sempre resistis ao Espírito Santo; assim vós sois como vossos pais.” (At 7.51)
Percebe-se nas passagens bíblicas citadas que apesar do desejo de Deus e de seu empenho em torná-lo concreto, sua vontade não foi realizada. Ele deseja, porém, não fez de seu desejo um imperativo categórico.
2. 1. Visão holística da vontade flexível de Deus nas Escrituras.
Interpretando cada passagem bíblica levando em consideração a integralidade holística das Escrituras, com muita clareza perceberemos a realidade de um Deus que em muitas situações manifesta vontades flexíveis, vontades que em muitas situações podem ser resistidas pelo homem.
O Antigo Testamento ilustra-nos com muitos fatos e detalhes a relação flexível entre Deus e Israel. Narra-nos as calamidades e os castigos sofridos pelo povo israelita por conta dos seus constantes e intencionais desvios do propósito de Deus. Conta-nos também, a trajetória de profetas humilhados pelo povo, que insistia em rejeitar a mensagem de Deus, e a consequente punição de Deus contra aqueles que o resistiam e o desobedeciam. Diante disso, podemos questionar: se Deus punia aqueles que lhes desobedecia, sua vontade pode ser considerada flexível? Se pensarmos por vontade flexível como a aceitação passiva e resignada a toda e qualquer manifestação contrária, a afirmação faz sentido. Porém, se entendermos o termo vontade flexível, como permissão a resistibilidade da vontade, a objeção não se mantém.
Apesar do desejo de Deus, muitas de suas orientações não foram acolhidas. A própria aproximação de Deus com o povo de Israel, firmada por uma aliança, deixa-nos bem claro a realidade da vontade flexível de Deus, pois o próprio conceito de aliança evidencia a possibilidade de desacato, ou seja, a possibilidade da quebra do pacto ou da aliança, como bem esclarece Dr. Vic Reasoner em seu artigo An arminian covenant theology (Uma teologia arminiana do pacto). (1)
Como já destacamos, não é necessário maiores esforços para perceber nas Escrituras a vontade flexível de Deus. Por tão explícita, dispensa-nos do trabalho de rigorosas e diretas citações textuais, bastando-nos lembrar que conceitos como prêmio, ameaça, punição, quando pronunciados na relação Deus e homem só fazem sentido diante da vontade flexível, pois, se toda vontade de Deus fosse vontade absoluta, logo seu desejo seria por si só, concretude, dispensando prêmios, ameaças e punições, que pressupõem, respectivamente, obediência e desobediência voluntária.
Em poucas palavras tentamos esclarecer a realidade da vontade flexível de Deus, mostrando biblicamente que há desejos de Deus que não são integralmente realizados, porém, não podemos nos dar por satisfeitos deixando de tratar biblicamente o também bíblico, conceito de vontade absoluta de Deus. Doravante, é sobre essa questão que iremos abordar.
2.2. Visão holística da vontade absoluta de Deus nas Escrituras.
Se as Escrituras atestam como fato de que é possível que algumas vontades de Deus não se realizem, o que significa dizer, que existe uma disposição em Deus em permitir que algumas de suas vontades sejam resistidas, ou seja, que existe o que tratamos como vontade flexível de Deus, isso não significa, ou melhor, está longe de significar que em Deus não existe vontade absoluta, ou em outras palavras, vontade definitiva ou rigorosa. Sim, as Escrituras também apontam para a realidade de uma vontade absoluta de Deus, uma vontade que pelo seu caráter não poderá deixar de se realizar.
Nas Escrituras vemos em várias passagens o fato de Deus firmou uma aliança com alguns homens ou povos. Por exemplo, a partir de Abraão, através de uma aliança, Deus estabeleceu um pacto com os patriarcas estabelecendo que suas sementes seriam abençoadas entre todas as nações da terra. À Abraão, Deus prometera que ele sereia pai de nações, e em Isaque, seu filho estabeleceria uma aliança perpétua para a sua descendência e depois dele (Gn 17:19). Reafirmando o pacto, através de um anjo disse o Senhor a Abraão:
Que deveras te abençoarei, e grandissimamente multiplicarei a tua descendência como as estrelas dos céus, e como a areia que está na praia do mar; e a tua descendência possuirá a porta dos seus inimigos;
E em tua descendência serão benditas todas as nações da terra; porquanto obedeceste à minha voz. (Gn 22. 17,18)
Podemos observar, que o pacto entre Deus e Abrão, só foi efetivamente firmado porque ele se comportou da maneira em que Deus desejava, ou seja, Abraão obedeceu sua voz. A partir daí, a aliança finalmente é firmada. A partir da obediência do patriarca, ficou estabelecido que através de sua descendência todas as nações da terra seriam benditas.
Quando Deus refaz a promessa a Isaque, filho de Abraão, de que ele teria uma numerosa descendência que iria possuir terras, e que através dela, os demais povos seriam abençoadas, ele coloca como lembrete que a benesse que ele herdará é uma confirmação de seu juramento à Abraão, porquanto, disse Deus: “Abraão obedeceu à minha voz, e guardou o meu mandado, os meus preceitos, os meus estatutos, e as minhas leis.” (Gn 26.5)
Quando observamos a aliança, passamos a conhecer seus termos, regras estabelecidas das quais os patriarcas e sua descendência deveriam seguir. A aliança deveria ser guardada, deveria ser observada, como bem podemos observar:
Esta é a minha aliança, que guardareis entre mim e vós, e a tua descendência depois de ti. (Gn 17.10)
Continuando a odisséia patriarcal, chegamos a Jacó, que se tornaria Israel. Mais uma vez Deus relembra de sua aliança, agora destacando que essa promessa está ligada a aliança estabelecida com Abraão e Isaque.
Eu sou o Deus Todo-Poderoso; frutifica e multiplica-te; uma nação, sim, uma multidão de nações sairá de ti, e reis procederão dos teus lombos;
E te darei a ti a terra que tenho dado a Abraão e a Isaque, e à tua descendência depois de ti darei a terra. (Gn 35. 11,12).
Em um dado momento, já sob a liderança de Moises, Deus propõe o extermínio do povo para fazer de Moises uma grande nação. Diante dessa proposta, o Israelita que viveu no Egito afirma:
Lembra-te de Abraão, de Isaque, e de Israel, os teus servos, aos quais por ti mesmo tens jurado, e lhes disseste: Multiplicarei a vossa descendência como as estrelas dos céus, e darei à vossa descendência toda esta terra, de que tenho falado, para que a possuam por herança eternamente. (Êx 32.13)
Por mais que Deus partisse do zero, fazendo de Moisés pai de uma grande nação (Ex 32.10), não estaria quebrando sua aliança com os patriarcas, pois Moisés, filho de Anrão, tinha por raiz Levi, portanto filho de Israel. Porém, independente disso, lutando pela continuidade dos filhos de Israel ele evoca a aliança de Deus estabelecida com os patriarcas Abraão, Isaque e Israel.
Por que recorremos à odisséia patriarcal de Israel num tópico que visa demonstrar biblicamente a realidade da vontade absoluta de Deus?
Na evocação de Moises à Aliança Patriarcal – percebe-se claramente a vontade absoluta de Deus que jamais será desfeita. Recorrendo a Aliança, Moisés tinha essa ideia como pressuposto. Ou seja, se Deus prometeu firmando sua promessa através de uma aliança, essa promessa será cumprida. Como vontade absoluta de Deus vê nesse pacto, que um povo deveria ser estabelecido sendo o abençoador de todas as nações. A culminância da aliança já está cumprida em Jesus Cristo, filho de Judá, luz para a revelação aos gentios e para a glória do teu povo de Israel.(Lc 2. 32).
Sem nenhuma dúvida – a vontade de Deus estabelecida como promessas jamais será desfeita. Esse é um dos traços da vontade absoluta que podemos compreender. O que Deus prometeu será; Sua palavra de é irrevogável.
3.0 Harmonizando os conceitos.
Apesar do uso de termos complexos que tentam teorizar a vontade de Deus, não existe em Deus uma desarmonia de sentimentos. Não há em Deus um aspecto que se separa do todo. Tudo em Deus está em harmonia com seu caráter amoroso, justo, reto e santo. Nada em Deus é dissociado, Ele não pode negar-se a si mesmo.
Os conceitos abordados servem apenas para entendermos que apesar de que nem tudo está rigidamente estabelecido nada está fora do controle de Deus. Com isso queremos dizer, que até a desobediência a sua vontade ocorre por sua permissão, instaurada por uma vontade prévia de estabelecer com sua criação um relacionamento verdadeiro baseado no amor, que dispensa o domínio sobre a vontade do outro.
Não existe choque de vontades. A vontade absoluta de Deus será e sempre será, e a sua vontade flexível ocorrerá sob certas condições que Ele mesmo absolutamente desejou. Por exemplo, desejou que todos se salvassem, porém, absolutamente desejou que só se salvariam pela fé, em Cristo Jesus.
Pode parecer contradição o fato de que alguns de Israel não herdarem a Terra prometida, ou seja, não receberem as bênçãos da posse de terras, prometido aos patriarcas a nação que sairia de suas sementes. Porém não é uma contradição, vemos aqui a dualidade harmônica da vontade de Deus. Percebemos que sua vontade absoluta foi estabelecida, ou seja, uma nação, da semente dos patriarcas herdou Canaã. Porém, apesar da vontade absoluta, vemos a restrição, em todos participariam individualmente da alegria da posse da Terra. Apesar do desejo de salvar o povo (Ex 6.8), cada indivíduo a exemplo dos patriarcas deveria observar a aliança para não violá-la. Os que violaram não herdaram. Apesar da vontade de Deus de que entrassem - essa vontade não era absoluta, seria concretizada pelos mesmos termos que Deus estabeleceu ao patriarca Abraão, ou seja, a obediência (Gn 26.06).
O mesmo ocorre com a Igreja. Deus estabeleceu que a Igreja, a nação santa, a raça eleita, alcançaria a Jerusalém celestial. Esse estabelecimento é a vontade absoluta de Deus, porém, isso não significa que todos que participam dela, alcançarão, mesmo sendo vontade de Deus. Essa vontade é uma vontade flexível para que seja realizada integralmente, faz-se necessário que as partes cumpram os termos estabelecidos. (Ap 2.5; 3.20).
Conclusão.
Antes de concluir nossa linha argumentativa, não podemos deixar de explicitar nosso limite em relação ao conhecimento. Tudo o que falamos são conjecturas, talvez desenvolvidas como fruto da influenciem da cultura ocidental, que após os gregos, a tudo tenta sistematizar. Somos filhos dessa herança. Porém, não podemos fazer dessa sistematização uma verdade absoluta. Não devemos de forma alguma nos arrogar alcançadores da realidade, pois como Paulo - percebemos que “agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido. “(1 Co 13.12).
Em sintonia com o apóstolo, apesar de, como filhos culturais da Grécia, conjecturarmos e especularmos sabemos que tudo o que conceituamos enquanto não for realmente esclarecido, está no campo apenas hipóteses e sob essa realidade nos mantemos humildes, sabendo que nosso entendimento e a adoção dele não é fundamental para a vivência de uma vida cristã autentica. Mas, mesmo diante dispensabilidade de nossa visão, por outro lado, não devemos negar a satisfação de nossas dúvidas e de nossa carência pelo conhecimento. Crendo que Deu dará a cada um segundo as suas obras, entendo que se fartará de respostas aquele que muito pergunta sobre Deus e sua realidade tendo como norte as Escrituras e como impulso a mente, sempre sintonizada com o Espírito Santo, que gradualmente nos levará ao fundamento da verdade.
Antes crescei na graça e conhecimento de nosso Senhor e Salvador, Jesus Cristo. A ele seja dada a glória, assim agora, como no dia da eternidade. Amém. (2 Pedro 3:18)
Lailson Castanha
______
(1) http://teologiaarminiana.blogspot.com/2009/01/uma-teologia-arminiana-do-pacto.html
Introdução.
Lendo as Escrituras, em alguns momentos, nos deparamos com passagens que não se mostram claras a nossa percepção. Na tentativa de elucidá-las, recorremos a manuais teológicos e comentaristas, principalmente, aqueles ligados a tradição teológica que mais nos aproximamos ou com que mais simpatizamos. Porém, nos manuais em que pesquisamos, nem sempre alcançamos êxito em elucidar a questão em que nos deparamos. Por vezes as ideias apresentadas não satisfazem o nosso desejo de ter o problema solucionado. Diante de tal situação, podemos ser incitados a tomar algumas atitudes. A saber:
1. Resignar-nos diante do problema não procurando solucioná-lo.
2. Buscar esclarecimento em outros manuais e comentaristas, mesmo naqueles que desafiam o sistema teológico que abraçamos.
3. Buscar nas próprias páginas das Escrituras uma explicação à questão levantada.
4. Buscar compreensão ao texto através de outros textos bíblicos e com o reforço de manuais teológicos e comentários bíblicos.
A adoção da primeira opção leva o leitor a se assemelhar a alguém que engole um alimento sem saboreá-lo. Ou seja, deixa de sentir o prazer de uma leitura compreendida. Ler um texto, e abandoná-lo sem a devida compreensão não é um gesto coerente de quem busca conhecimento. As demais atitudes mostram que o leitor tem interesse pelo conhecimento ao buscar alternativas a fim de sanar o problema que se levantou.
As vezes alcançamos soluções a problemas bíblicos nas próprias páginas das Escrituras, porém, existem momentos em que sentimos a necessidade de nos valer de auxílios interpretativos para conseguirmos compreender um texto que não se mostra claro a nossa razão. Não são somente textos que se mostram obscuros a nossa mente, por vezes, alguns termos fazem nossa mente trabalhar quase que infecundamente em busca de compreensão para problemas que a adoção do termo engendra. Por exemplo, os termos abordados nas Escrituras como: eleição, predestinação, escolha, justiça, equidade, acepção de pessoas, etc. Sobre eles os diversos sistemas teológicos e filosóficos muitas vezes apontam para soluções irreconciliáveis e distantes uma das outras. Problemas ainda maiores encontraremos se pensarmos na interpretação de algum texto bíblico usando termos não literalmente bíblicos, como: livre-arbítrio, graça irresistível, graça preveniente, etc. Lendo os manuais, ou obras de grandes pensadores e comentaristas, encontramos informações interessantes sobre os termos ainda obscuros. Por exemplo, o termo graça preveniente pode ser encontrado em Anselmo da Cantuária, Tomás de Aquino, Jacobus Arminius e John Wesley. A abordagem de termos já desenvolvida pelos grandes pensadores e comentarias pode contribuir para a nossa compreensão e nos auxiliar na interpretação de textos que só farão sentido somente com a adoção de alguns conceitos extra-bíblicos, porém, implicitamente bíblicos.
Apesar da grande ajuda dos manuais e comentaristas bíblicos para uma maior compreensão das Escrituras e auxílio para a resolução de problemas encontrados em leituras bíblicas, muitas vezes conseguimos encontrar nas próprias páginas sacras soluções para os problemas que podem surgir a partir da leitura das Escrituras. Assumindo essa possibilidade, faz-se necessário, buscar a compreensão do texto, tendo em vista a visão panorâmica das Escrituras, ou interpretando cada passagem levando-se em consideração a coerência com os demais temas bíblicos. Com isso, nenhuma passagem deve ser interpretada isoladamente. Deve-se levar em consideração o macroambiente bíblico.
Por agora, faremos um esforço para compreender algumas questões de ordem soteriológica surgidas a partir do exame bíblico, buscando respostas nas próprias páginas das Escrituras.
1. A questão da graça, eleição e da irresistibilidade da graça.
A questão da eleição e da livre escolha do homem tem conturbado ao longo de séculos os debates teológicos. Apesar de as disputas em torno a temas soteriológicos serem mais brandas na hodiernidade, se comparado com as disputas travadas na ambiência medieval e também renascentista ou mesmo na era das luzes, elas ainda são intensas. Percebe-se com muita clareza a intensidade e atualidade desses temas na grande variedade de publicações editoriais e nos diversos sítios teológicos na Internet.
Quando se fala em eleição, alguns sistemas teológicos procuram definir esse termo se apropriando do termo soberania divina. Com isso, tencionam conceituá-lo como uma escolha direta e definitiva de Deus, e que, por conseqüência, não leva em conta a ação humana. Além disso, por conta de ser a eleição, uma escolha soberana Deus, é sempre certo, pensam, que o eleito a receberá sem restrições e jamais fará resistência a ela. Ao comentarmos sobre eleição, não podemos ignorar outro vocábulo importante: a graça. Da mesma forma que a eleição é uma escolha soberana e absoluta de Deus a finalidade última de sua graça, acredita-se, será absolutamente concretizada. Sendo a graça uma manifestação do favor de Deus aos homens tendo por fim último a redenção e salvação eterna, segundo essa linha de pensamento, fica evidente o fato de que, aqueles que não alcançaram ou não alcançarão a salvação, jamais foram alvo do gracioso favor de Deus, pois, se Deus tencionasse salvá-los, logo, sendo soberano, seu desejo se concretizaria.
Como qualquer afirmação, essa asserção deve passar por uma investigação. Sendo a boa investigação construída a partir de indagações, iniciaremos nossa averiguação com algumas perguntas.
Será que os conceitos graça e eleição estão sempre implicados nas Escrituras ao exercício de uma soberania absoluta que elimina qualquer possibilidade de ações contrárias a vontade de Deus?
Em absoluto, as Escrituram negam que a vontade de Deus pode ser resistida, ou é possível encontrar indícios bíblicos que apontam para o fato de que Deus, em muitos casos, permite que sua vontade seja resistida?
Comentávamos a pouco sobre a possibilidade de removermos problemas que se levantam a partir da leitura de textos bíblicos, ou de termos, usando as próprias páginas bíblicas para elucidá-los. Por exemplo, podemos compreender as advertências que faz o apóstolo Paulo e o escritor da carta aos Hebreus, orientando os destinatários de suas epístolas a perceberem e compreenderem a necessidade de se manterem vigilantes na caminhada espiritual, lendo o êxodo israelita do Egito à Canaã. O apóstolo Paulo e o escritor da epístola aos Hebreus ensinam o leitor bíblico a usar alguns textos do Testamento Antigo como figuras, ou sombras ou como exemplos de coisas que poderiam nos ocorrer (1Co 10.11); (Hb 3.11). Tanto o apóstolo Paulo, no capítulo 10 da epístola aos Coríntios, tanto o remetente da epistola aos Hebreus, nos capítulos 3 e 4, usam o fracasso do povo de Israel no deserto e a falta de êxito da maioria que saiu do Egito na tentativa de entrar na Terra Prometida, como exemplo e advertência aos destinatários de suas epístolas. Assim adverte o escritor da epístola aos Hebreus:
“Vede, irmãos, que nunca haja em qualquer de vós um coração mau e infiel, para se apartar do Deus vivo.
Antes, exortai-vos uns aos outros todos os dias, durante o tempo que se chama Hoje, para que nenhum de vós se endureça pelo engano do pecado;
Porque nos tornamos participantes de Cristo, se retivermos firmemente o princípio da nossa confiança até ao fim.
Enquanto se diz: Hoje, se ouvirdes a sua voz, Não endureçais os vossos corações, como na provocação.
Porque, havendo-a alguns ouvido, o provocaram; mas não todos os que saíram do Egito por meio de Moisés.
Mas com quem se indignou por quarenta anos? Não foi porventura com os que pecaram, cujos corpos caíram no deserto?
E a quem jurou que não entrariam no seu repouso, senão aos que foram desobedientes?
E vemos que não puderam entrar por causa da sua incredulidade.” (Hb 3.12 – 19)
E continua:
“Temamos, pois, que, porventura, deixada a promessa de entrar no seu repouso, pareça que algum de vós fica para trás.
Porque também a nós foram pregadas as boas novas, como a eles, mas a palavra da pregação nada lhes aproveitou, porquanto não estava misturada com a fé naqueles que a ouviram.
(...)Procuremos, pois, entrar naquele repouso, para que ninguém caia no mesmo exemplo de desobediência.” (Hb 4.1, 2 e 11)
Esta passagem bíblica ajuda-nos na elucidação dos conceitos bíblicos eleição e graça. Percebemos ao ler as advertências que o escritor não leva em consideração a possibilidade de uma graça e eleição absolutas. Ele se vale dos exemplos do passado, justamente por não se apegar a ideia de eleição pessoal pré-determinada e graça irresistível. A advertência do rementente pressupõe, a exemplo dos israelitas, a possibilidade de um não alcance da promessa por conta dos contados entre os escolhidos. Pode-se, sem forçar o texto, substituir Israel (que aqui é usado como figura) pela Igreja. Pode-se comparar o seu exemplo e as suas possibilidades com as da Igreja. Cada membro da comunidade de Israel é um tipo, um arquétipo de cada membro da comunidade da Igreja. Assim, como a cada israelita foi-lhes prometida a Terra de Canaã, a cada membro da Igreja, é prometido o acesso à Jerusalém Celestial. Assim como individualmente muitos israelitas não alcançaram a promessa, sendo que Israel a alçançou, mesmo a Igreja alçançando a promessa, muitos que estão contados entre o resgatados não a alçançarão. (2Pe 2.2).
Nas advertências dadas tanto por Paulo, como pelo remetende da espítola direcionada aos Hebreus, percebe-se uma preocupação em poupar os crentes do extravio. Essa preocupação, destaca a possibilidade de crentes se perderem e apesar disso, não existe o desejo por parte dos apóstolos de que se percam. Se os apóstolos eram homens inspirados por Deus, logo, podemos pensar que o desejo que deixaram explícito, implícito em seus cuidados, de que aqueles que poderiam cair, não caíssem, também era o desejo do Senhor. E, se o era o desejo de Deus, que os crentes não caíssem, fica evidente através da advertência dos apóstolos, de que crentes os quais Deus não deseja que caiam, cairão. Logo podemos pensar, com base bíblica, que nem toda vontade de Deus é estabelecida. É sobre essa questão que por agora abordaremos.
2. Vontade absoluta e vontade flexível de Deus.
É consenso entre boa parte de grupos cristãos o juízo sobre soberania de Deus. Apesar de o pensamento a respeito da soberania ser aceito por boa parte dos cristãos, a conceitualização ou noção dessa ideia não é tão homogênia. Enquanto boa parte dos cristãos implicam soberania divina em total e absoluto domínio sobre todos os eventos, outra parte não envolve o conceito de soberania de Deus na ideia de domínio absoluto.
Apesar de alguns textos parecerem corroborar a tese de que um Deus soberano tem sua vontade cumprida sobre todos os aspectos, a visão holística das Escrituras não atesta esse pressuposto. Podemos perceber nas Escrituras aspectos distintos da vontade de Deus, a saber:
Vontade absoluta, vontade última ou vontade definitiva. Podemos tratá-la também como vontade estrita; ou com qualquer termo que denota determinação rigorosa e irremovível.
Vontade flexível, vontade condicional ou vontade não absoluta. Podemos tratá-la também com qualquer termo que denota condições; (p.ex.: liberdade sob condições, ou salvo se; uma vez que, conquanto que...)
A afirmação de Jó nenhum dos seus planos podem ser frustrados (Jó 42.2) está relacionada ao aspecto absoluto, estrito, exato da vontade de Deus. Ele fala sobre a vontade última de Deus que não sofre interferências nem mesmo do próprio Deus. Quando Moisés afirma que Deus prometeu uma terra ao povo de Israel e o apóstolo Pedro afirma que a Igreja é a nação Eleita - relacionamos o desejo de Deus em dar a Terra Prometida a Israel e de eleger a Igreja como seu povo Santo a vontade definitiva de Deus, ou seja, é um desejo definitivo e isso significa dizer que nada mudará esse seu desejo e, por conseguinte, ele se realizará. Porém, o desejo de Deus, de que, exatamente, todos sejam salvos, tanto a totalidade de Israel, quanto da igreja está relacionado a vontade flexível de Deus, não sendo apresentado como vontade rigorosa. Quando lemos “Quantas vezes eu quis reunir os seus filhos, como a galinha reúne os seus pintinhos debaixo das suas asas, mas vocês não quiseram” (Mateus 23.37) percebemos claramente a vontade flexível de Deus. Deus gostaria que seu povo acolhesse seu desejo, porém, permitiu que o povo exercesse seu livre arbítrio para não acolher a sua vontade.
A vontade Flexível de Deus ainda pode ser percebida nas seguintes passagens:
“Veio para o que era seu, e os seus não o receberam.” (João 1.11).
“Que mais se podia fazer à minha vinha, que eu lhe não tenha feito? Por que, esperando eu que desse uvas boas, veio a dar uvas bravas?"(Is 5.4).
“Eu mesmo te plantei como vide excelente, uma semente inteiramente fiel; como, pois, te tornaste para mim uma planta degenerada como vide estranha?” (Jeremias 2:21).
“Homens de dura cerviz, e incircuncisos de coração e ouvido, vós sempre resistis ao Espírito Santo; assim vós sois como vossos pais.” (At 7.51)
Percebe-se nas passagens bíblicas citadas que apesar do desejo de Deus e de seu empenho em torná-lo concreto, sua vontade não foi realizada. Ele deseja, porém, não fez de seu desejo um imperativo categórico.
2. 1. Visão holística da vontade flexível de Deus nas Escrituras.
Interpretando cada passagem bíblica levando em consideração a integralidade holística das Escrituras, com muita clareza perceberemos a realidade de um Deus que em muitas situações manifesta vontades flexíveis, vontades que em muitas situações podem ser resistidas pelo homem.
O Antigo Testamento ilustra-nos com muitos fatos e detalhes a relação flexível entre Deus e Israel. Narra-nos as calamidades e os castigos sofridos pelo povo israelita por conta dos seus constantes e intencionais desvios do propósito de Deus. Conta-nos também, a trajetória de profetas humilhados pelo povo, que insistia em rejeitar a mensagem de Deus, e a consequente punição de Deus contra aqueles que o resistiam e o desobedeciam. Diante disso, podemos questionar: se Deus punia aqueles que lhes desobedecia, sua vontade pode ser considerada flexível? Se pensarmos por vontade flexível como a aceitação passiva e resignada a toda e qualquer manifestação contrária, a afirmação faz sentido. Porém, se entendermos o termo vontade flexível, como permissão a resistibilidade da vontade, a objeção não se mantém.
Apesar do desejo de Deus, muitas de suas orientações não foram acolhidas. A própria aproximação de Deus com o povo de Israel, firmada por uma aliança, deixa-nos bem claro a realidade da vontade flexível de Deus, pois o próprio conceito de aliança evidencia a possibilidade de desacato, ou seja, a possibilidade da quebra do pacto ou da aliança, como bem esclarece Dr. Vic Reasoner em seu artigo An arminian covenant theology (Uma teologia arminiana do pacto). (1)
Como já destacamos, não é necessário maiores esforços para perceber nas Escrituras a vontade flexível de Deus. Por tão explícita, dispensa-nos do trabalho de rigorosas e diretas citações textuais, bastando-nos lembrar que conceitos como prêmio, ameaça, punição, quando pronunciados na relação Deus e homem só fazem sentido diante da vontade flexível, pois, se toda vontade de Deus fosse vontade absoluta, logo seu desejo seria por si só, concretude, dispensando prêmios, ameaças e punições, que pressupõem, respectivamente, obediência e desobediência voluntária.
Em poucas palavras tentamos esclarecer a realidade da vontade flexível de Deus, mostrando biblicamente que há desejos de Deus que não são integralmente realizados, porém, não podemos nos dar por satisfeitos deixando de tratar biblicamente o também bíblico, conceito de vontade absoluta de Deus. Doravante, é sobre essa questão que iremos abordar.
2.2. Visão holística da vontade absoluta de Deus nas Escrituras.
Se as Escrituras atestam como fato de que é possível que algumas vontades de Deus não se realizem, o que significa dizer, que existe uma disposição em Deus em permitir que algumas de suas vontades sejam resistidas, ou seja, que existe o que tratamos como vontade flexível de Deus, isso não significa, ou melhor, está longe de significar que em Deus não existe vontade absoluta, ou em outras palavras, vontade definitiva ou rigorosa. Sim, as Escrituras também apontam para a realidade de uma vontade absoluta de Deus, uma vontade que pelo seu caráter não poderá deixar de se realizar.
Nas Escrituras vemos em várias passagens o fato de Deus firmou uma aliança com alguns homens ou povos. Por exemplo, a partir de Abraão, através de uma aliança, Deus estabeleceu um pacto com os patriarcas estabelecendo que suas sementes seriam abençoadas entre todas as nações da terra. À Abraão, Deus prometera que ele sereia pai de nações, e em Isaque, seu filho estabeleceria uma aliança perpétua para a sua descendência e depois dele (Gn 17:19). Reafirmando o pacto, através de um anjo disse o Senhor a Abraão:
Que deveras te abençoarei, e grandissimamente multiplicarei a tua descendência como as estrelas dos céus, e como a areia que está na praia do mar; e a tua descendência possuirá a porta dos seus inimigos;
E em tua descendência serão benditas todas as nações da terra; porquanto obedeceste à minha voz. (Gn 22. 17,18)
Podemos observar, que o pacto entre Deus e Abrão, só foi efetivamente firmado porque ele se comportou da maneira em que Deus desejava, ou seja, Abraão obedeceu sua voz. A partir daí, a aliança finalmente é firmada. A partir da obediência do patriarca, ficou estabelecido que através de sua descendência todas as nações da terra seriam benditas.
Quando Deus refaz a promessa a Isaque, filho de Abraão, de que ele teria uma numerosa descendência que iria possuir terras, e que através dela, os demais povos seriam abençoadas, ele coloca como lembrete que a benesse que ele herdará é uma confirmação de seu juramento à Abraão, porquanto, disse Deus: “Abraão obedeceu à minha voz, e guardou o meu mandado, os meus preceitos, os meus estatutos, e as minhas leis.” (Gn 26.5)
Quando observamos a aliança, passamos a conhecer seus termos, regras estabelecidas das quais os patriarcas e sua descendência deveriam seguir. A aliança deveria ser guardada, deveria ser observada, como bem podemos observar:
Esta é a minha aliança, que guardareis entre mim e vós, e a tua descendência depois de ti. (Gn 17.10)
Continuando a odisséia patriarcal, chegamos a Jacó, que se tornaria Israel. Mais uma vez Deus relembra de sua aliança, agora destacando que essa promessa está ligada a aliança estabelecida com Abraão e Isaque.
Eu sou o Deus Todo-Poderoso; frutifica e multiplica-te; uma nação, sim, uma multidão de nações sairá de ti, e reis procederão dos teus lombos;
E te darei a ti a terra que tenho dado a Abraão e a Isaque, e à tua descendência depois de ti darei a terra. (Gn 35. 11,12).
Em um dado momento, já sob a liderança de Moises, Deus propõe o extermínio do povo para fazer de Moises uma grande nação. Diante dessa proposta, o Israelita que viveu no Egito afirma:
Lembra-te de Abraão, de Isaque, e de Israel, os teus servos, aos quais por ti mesmo tens jurado, e lhes disseste: Multiplicarei a vossa descendência como as estrelas dos céus, e darei à vossa descendência toda esta terra, de que tenho falado, para que a possuam por herança eternamente. (Êx 32.13)
Por mais que Deus partisse do zero, fazendo de Moisés pai de uma grande nação (Ex 32.10), não estaria quebrando sua aliança com os patriarcas, pois Moisés, filho de Anrão, tinha por raiz Levi, portanto filho de Israel. Porém, independente disso, lutando pela continuidade dos filhos de Israel ele evoca a aliança de Deus estabelecida com os patriarcas Abraão, Isaque e Israel.
Por que recorremos à odisséia patriarcal de Israel num tópico que visa demonstrar biblicamente a realidade da vontade absoluta de Deus?
Na evocação de Moises à Aliança Patriarcal – percebe-se claramente a vontade absoluta de Deus que jamais será desfeita. Recorrendo a Aliança, Moisés tinha essa ideia como pressuposto. Ou seja, se Deus prometeu firmando sua promessa através de uma aliança, essa promessa será cumprida. Como vontade absoluta de Deus vê nesse pacto, que um povo deveria ser estabelecido sendo o abençoador de todas as nações. A culminância da aliança já está cumprida em Jesus Cristo, filho de Judá, luz para a revelação aos gentios e para a glória do teu povo de Israel.(Lc 2. 32).
Sem nenhuma dúvida – a vontade de Deus estabelecida como promessas jamais será desfeita. Esse é um dos traços da vontade absoluta que podemos compreender. O que Deus prometeu será; Sua palavra de é irrevogável.
3.0 Harmonizando os conceitos.
Apesar do uso de termos complexos que tentam teorizar a vontade de Deus, não existe em Deus uma desarmonia de sentimentos. Não há em Deus um aspecto que se separa do todo. Tudo em Deus está em harmonia com seu caráter amoroso, justo, reto e santo. Nada em Deus é dissociado, Ele não pode negar-se a si mesmo.
Os conceitos abordados servem apenas para entendermos que apesar de que nem tudo está rigidamente estabelecido nada está fora do controle de Deus. Com isso queremos dizer, que até a desobediência a sua vontade ocorre por sua permissão, instaurada por uma vontade prévia de estabelecer com sua criação um relacionamento verdadeiro baseado no amor, que dispensa o domínio sobre a vontade do outro.
Não existe choque de vontades. A vontade absoluta de Deus será e sempre será, e a sua vontade flexível ocorrerá sob certas condições que Ele mesmo absolutamente desejou. Por exemplo, desejou que todos se salvassem, porém, absolutamente desejou que só se salvariam pela fé, em Cristo Jesus.
Pode parecer contradição o fato de que alguns de Israel não herdarem a Terra prometida, ou seja, não receberem as bênçãos da posse de terras, prometido aos patriarcas a nação que sairia de suas sementes. Porém não é uma contradição, vemos aqui a dualidade harmônica da vontade de Deus. Percebemos que sua vontade absoluta foi estabelecida, ou seja, uma nação, da semente dos patriarcas herdou Canaã. Porém, apesar da vontade absoluta, vemos a restrição, em todos participariam individualmente da alegria da posse da Terra. Apesar do desejo de salvar o povo (Ex 6.8), cada indivíduo a exemplo dos patriarcas deveria observar a aliança para não violá-la. Os que violaram não herdaram. Apesar da vontade de Deus de que entrassem - essa vontade não era absoluta, seria concretizada pelos mesmos termos que Deus estabeleceu ao patriarca Abraão, ou seja, a obediência (Gn 26.06).
O mesmo ocorre com a Igreja. Deus estabeleceu que a Igreja, a nação santa, a raça eleita, alcançaria a Jerusalém celestial. Esse estabelecimento é a vontade absoluta de Deus, porém, isso não significa que todos que participam dela, alcançarão, mesmo sendo vontade de Deus. Essa vontade é uma vontade flexível para que seja realizada integralmente, faz-se necessário que as partes cumpram os termos estabelecidos. (Ap 2.5; 3.20).
Conclusão.
Antes de concluir nossa linha argumentativa, não podemos deixar de explicitar nosso limite em relação ao conhecimento. Tudo o que falamos são conjecturas, talvez desenvolvidas como fruto da influenciem da cultura ocidental, que após os gregos, a tudo tenta sistematizar. Somos filhos dessa herança. Porém, não podemos fazer dessa sistematização uma verdade absoluta. Não devemos de forma alguma nos arrogar alcançadores da realidade, pois como Paulo - percebemos que “agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido. “(1 Co 13.12).
Em sintonia com o apóstolo, apesar de, como filhos culturais da Grécia, conjecturarmos e especularmos sabemos que tudo o que conceituamos enquanto não for realmente esclarecido, está no campo apenas hipóteses e sob essa realidade nos mantemos humildes, sabendo que nosso entendimento e a adoção dele não é fundamental para a vivência de uma vida cristã autentica. Mas, mesmo diante dispensabilidade de nossa visão, por outro lado, não devemos negar a satisfação de nossas dúvidas e de nossa carência pelo conhecimento. Crendo que Deu dará a cada um segundo as suas obras, entendo que se fartará de respostas aquele que muito pergunta sobre Deus e sua realidade tendo como norte as Escrituras e como impulso a mente, sempre sintonizada com o Espírito Santo, que gradualmente nos levará ao fundamento da verdade.
Antes crescei na graça e conhecimento de nosso Senhor e Salvador, Jesus Cristo. A ele seja dada a glória, assim agora, como no dia da eternidade. Amém. (2 Pedro 3:18)
Lailson Castanha
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(1) http://teologiaarminiana.blogspot.com/2009/01/uma-teologia-arminiana-do-pacto.html
Gravura: Cristo Bizantino, mosaico do século XII, na catedral de Palermo, originário da catedral de Cefalu.